segunda-feira, 16 de junho de 2014

PAULO MENDES CAMPOS (1922-1991)

Mineiro de Belo Horizonte nascido em 1922 e falecido em 1991, viveu a maior parte de sua vida no Rio de Janeiro. Livros como O domingo azul do mar fizeram dele um dos melhores poetas de sua geração. Como cronista, foi, ao lado de Fernando Sabino e Rubem Braga, um dos responsáveis pelo enorme prestígio que o gênero ganhou no país nos anos 1950-60. Marcada pelo humor e pelo lirismo, sua obra, em que se incluem livros como O cego de IpanemaHomenzinho na ventaniaO colunista do morro, permaneceu esgotada durante anos antes de ser reorganizada pelo jornalista Flávio Pinheiro e ganhar novos títulos, entre eles O amor acabaCisne de feltroO gol é necessário e Artigo indefinido.







CANTIGA PARA DJANIRA

O vento é o aprendiz das horas lentas,
traz suas invisíveis ferramentas,
suas lixas, seus pentes finos,
cinzela seus cabelos pequeninos,
onde não cabem gigantes contrafeitos,
e, sem emendar jamais os seus defeitos,
já rosna descontente e guaia
de aflição e dispara à outra praia,
onde talvez enfim possa assentar
seu momento de areia — e descansar.

***




TEMPO-ETERNIDADE

O instante é tudo para mim que ausente
do segredo que os dias encadeia
me abismo na canção que pastoreia
as infinitas nuvens do presente.

Pobre de tempo fico transparente
à luza desta canção que me rodeia
como se a carne se fizesse alheia
à nossa opacidade descontente.

Nos meus olhos o tempo é uma cegueira
e a minha eternidade uma bandeira
aberta em céu azul de solidões.

Sem margens sem destino sem história
o tempo que se esvai é minha glória
e o susto de minh´alma sem razões.

***





NESTE SONETO

Neste soneto, meu amor, eu digo,
um pouco à moda de Tomás Gonzaga,
que muita coisa bela o verso indaga,
mas poucos belos versos eu consigo.
Igual à fonte escassa no deserto,
minha emoção é muita, forma, pouca.
Se o verso errado sempre vem-me à boca,
só no meu peito vive o verso certo.
Ouço uma voz soprar à frase dura
umas palavras brandas, entretanto,
não sei caber as falas de meu canto,
dentro da forma fácil e segura.
E louvo aqui aqueles grandes mestres
das emoções do céu e das terrestres. 


FRANKLIN DÓREA (1836-1906)



Franklin Dória (F. Américo de Menezes D., Barão de Loreto), político e poeta, nasceu na ilha dos Frades, Itaparica, Bahia, em 12 de julho de 1836, e faleceu na cidade do Rio de Janeiro, em 28 de outubro de 1906. Eleito pelos trinta membros que compareceram à sessão de instalação, em 28 de janeiro de 1897, para completar o quadro de Acadêmicos, Franklin Dória é o fundador da Cadeira nº. 25, que tem como patrono o poeta Junqueira Freire, seu grande amigo. Era filho de José Inácio de Menezes Dória e de Águeda Clementina de Menezes Dória. Formou-se em Direito na Faculdade de Recife em 1859, tendo como colegas Aristides Lobo, Gusmão Lobo e Joaquim Medeiros e Albuquerque, pai de Medeiros e Albuquerque. No mesmo ano de sua formatura, aos 23 anos, publicou Enlevos, seu único volume de poesia, impregnado de lirismo nas descrições do cenário das belezas naturais da "ilha encantada" do poeta. Cedo abandonou o verso. E desde o aparecimento do seu primeiro e único livro, Enlevo, só publicou, em poesia, a tradução de Evangelina, de Longfellow, lida na presença do Imperador. Dedicou-se à advocacia e à política. Como advogado, tomou a si a defesa de causas importantes, como, por exemplo, a de Pontes Visgueiro, autor de famoso crime no Maranhão. Exerceu as funções de promotor, delegado e juiz. Em 1863, foi eleito deputado provincial na Bahia. Em 1864, nomeado governador do Piauí; em 1866, governador do Maranhão, e em 1880, governador de Pernambuco. Em 1872, foi eleito para a Câmara Federal, sendo reeleito, em mandatos alternados, até 1885. Algumas de suas campanhas no Parlamento do Império a campanha pela instrução pública e a campanha pela eleição direta revelaram-no um grande parlamentar, e ocupou a presidência da Câmara. Foi ministro da Guerra no gabinete Saraiva (1881), quando, entre outras iniciativas, fundou a Biblioteca do Exército, que perdura até hoje, e Ministro do Império no último gabinete da Monarquia, do Visconde de Ouro Preto (1889). Conselheiro do Império, recebeu o título de Barão de Loreto em 1888. Era ligado à Família Imperial, acompanhando-a no exílio. De volta ao Brasil, dedicou-se à advocacia e à literatura. Foi professor de literatura por concurso no Colégio Pedro II, com a tese Da Poesia – caracteres essenciais, diferença da prosa- qualidade da poesia. Pertenceu ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.




SOL NASCENTE

O hálito de Deus o sol acende;
E o sol o manto de oiro presto estende
Sobre o éter azul e a terra e o mar:
Tudo luz, tudo brilha, tudo encanta,
Se espreguiça, se agita, se alevanta,
Ao seu ardente e penetrante olhar.

As nuvens são corcéis, que dispararam
Da arena afogueada que formaram
As faixas do horizonte em combustão:
Freios partidos, pelo ar galopam;
Sangue vivo escumando, ora se topam,
Ora em procura do infinito vão.

A branca estrela que o crepúsculo adorna,
E torrentes de amor lânguida entorna,
Nos trasflores celestes se sumiu:
Longa saia de malha coruscante
Do mar, que chora e ri no mesmo instante,
As entranhas geladas constringiu.

O orvalho transparente o chão prateia:
Aqui sobre uma flor trêmulo ondeia,
Sobre outra numa lágrima se esvai;
Aqui parece pedra preciosa,
Ali, bem como chuva luminosa,
Lento e suave do arvoredo cai.

Ave enorme, do chão voa a neblina!
Frouxo clarão de lâmpada ilumina
Do vale o solitário penetral,
- Página em flores que a sorrir se deixam,
E sobre a qual dois altos cerros fecham
Parênteses de pedra colossal.

Ali o monte de coroa erguida,
Que ao céu implora co’uma voz sumida,
Ao menos, uma gota de licor
Para a ferida, que lhe o raio abrira,
- Gládio que a nuvem da bainha tira
No campo da procela, todo horror...

Matas, que enche, à só noite, a fantasia
De abusões, de gemidos de agonia,
De pálidos lêmures infernais,
Do sol nascente aos raios purpurinos,
Entre a harmonia de singelos hinos,
Como tão majestosas acordais!

Vós sois um mundo nebuloso e vasto,
Em que apenas se imprime o leve rasto
Da avezinha, da fera, ou do réptil:
Em lugar de palácio altivo e nobre,
Que o oiro e a lama ao mesmo tempo cobre,
Simples ninho abrigais, rude covil.

Oh! eu irei um dia, eu o primeiro,
Vaguear, namorado e aventureiro,
Por vossos labirintos de cipó;
Ver a azul borboleta que esvoaça,
A suçuarana que raivada passa,
E a cobra de coral rojar no pó!

E voltarei co’a mente incendiada!
E sentirei a vida mais ousada,
Mais rubro o céu das minhas ilusões!
Colombo, cheio de riqueza imensa;
Homem, cheio de esp’ranças e de crença;
Poeta, cheio de mil inspirações!
É toda um paraíso agora a terra.

Abraçam-se colina, outeiro e serra,
Com a sua coroa cada qual:
Aquela tem penacho de esmeralda,
Esta de malmequer áurea grinalda,
O outeiro a choça, que atalaia o val.
Tudo agora começa seu caminho:

O verme sai do pó, a ave do ninho,
Da casinha de palha o pescador;
A abelha infatigável da colméia,
Da luz o brilho, da palavra a idéia,
O perfume do cálice da flor.
Que orquestra sobe ao céu! O mar vozeia.

Murmura a fonte, o pássaro gorjeia,
E a brisa da manhã voa a gemer;
Canta à viola a jovem camponesa,
O desditoso chora, o crente reza...
Destarte faz a dor eco ao prazer!

Quão belo é o sol nascente! Olhos abertos,
Penetra os pólos de cristal cobertos,
Devassa nunca vistos areais;
Farol do tempo, leão de áureas crinas,
Diz, topando nos crânios das ruínas:
Aqui foram impérios colossais! –

Pêndula que se agita no infinito,
Que ouve talvez da eternidade o grito,
Atalaia de todas as ações,
Anelado, redoira na memória
Era feliz, que eternizou a glória,
Sempre amada dos grandes corações.

Quão belo é o sol nascente! Ele afugenta
Do ar a cerração grossa e cinzenta,
D’alma a tristeza e os pensamentos vis:
Aos homens todos ao lavor convida;
E dá força, e vigor, a alento, e vida
Ao que é desgraçado, ao que é feliz.

Ao mendigo, que fina-se, consola
Com a promessa de abundante esmola,
Ou de algum protetor bom, liberal;
Ao pobre manda um raio de ventura;
Ao órfão, desvalida criatura,
Faz sonhar doce afago maternal.

Ele diz ao que é forte: - Hoje clemência!
Ao fraco: - Mais um dia paciência!
Àquele que lamenta-se: - Esperai!
Aos tristes ele diz: - Sede contentes!
Ao meu influxo borbulhai, sementes!
Preciosas idéias, borbulhai!

Ele diz ao poeta: - Alevantai-vos!
Dos grandes pensamentos inspirai-vos!
Ide, correi, correi às multidões!
A fé levai-lhes no queimar dos hinos,
Como outrora os Apóstolos divinos
Levaram graça e luz a mil nações.

Aos lábios todos ele diz: - Sorri-vos!
A toda flor e coração: - Abri-vos!
Lançai perfumes, transbordai de amor!
Para tudo o que nasce e vive e sente
É belo, sempre belo o sol nascente,
Reverberando aos pés do Criador!

***



A FELICIDADE

Ser feliz não é ocioso
Passar dias festivais,
Nem ter cofre precioso
Pejado de cabedais;
Não, isto não é ventura;
Ao mesmo Creso tortura
A agonia do sofrer;
Vive o rico na opulência,
Mas desgostoso a existência
Não cessa de maldizer.

Ser feliz não é pujante
Conquistar cem regiões
Mostrar-se um vulto que espante
Pelo brilho das ações;
Acender em cada passo,
Seguro, de glória um traço
Indelével, imortal;
E por fim, co’a fronte erguida,
Tranqüilo perder a vida,
Tendo ganho um pedestal.

Não é, não. Da glória a estrada
De espinhos coberta jaz;
É árdua, longa a jornada,
Que, por seu trilho se faz.
A fama nos colhe o fruto;
O egoísmo corrupto
Faminto, impudente o rói:
O homem deificado
Foi antes martirizado,
Chame-se gênio ou herói.

Ser feliz é nesta vida
Ter um seio a estremecer,
Onde a alma beba insofrida
O frenesi do prazer;
Onde a fronte macilenta
Sinta o calor, que aviventa
Com suave languidez;
Onde perfumes aéreos
Embalsamem os mistérios
Da amorosa embriaguez.

Ser feliz é, deslembrado
Dos mundanos vaivéns,
Junto do ente adorado
Gozar inúmeros bens;
Levar tempo indefinido
Em seus olhos embebido,
Como quem atento lê;
Co’o peito que forte pulsa,
A mais pequena repulsa,
Dizer-lhe terno: Por quê?

Ser feliz é no retiro
Ter companheira fiel,
Que pague longo suspiro
Co’um beijo, que sabe a mel;
Com ela amar os luares,
As aragens salutares,
A sombra que envolve a chã,
As flores da sicupira,
E o hino de cada lira,
Que soa pela manhã.

Ser feliz é, nessas horas
De tédio e vaga aflição,
De lembranças opressoras,
De opressora inquietação,
Co’aquela que nos entrega,
Ébria de amor, de amor cega,
O fio do dias seus,
Procurar o santuário,
E bem ao pé do Calvário,
Orando, falar a Deus.

Não! tudo não é vaidade:
Não! tudo não é sofrer:
Existe a felicidade,
Logo que existe a mulher.
Amai-a, amai-a deveras;
O amor é das quimeras,
Se ele é quimera, a melhor:
Nutri um amor profundo,
Que há de encantar-vos o mundo.
A felicidade é o amor!

***



FADÁRIO


O poeta, primeiro, preludia
Sons fugitivos de um viver sem dor:
Colhe sonhos gentis na fantasia;
É o doce cantor.

Ama o céu, e o mar, e a natureza,
Essa eterna epopéia do Senhor;
Ama, sem escolher, qualquer beleza;
É o doce cantor.

Ao depois, o poeta se desprende
Do formoso jardim, no qual viveu:
Sua alma agora vivo lume acende;
É o cantor do céu.

Para o amor da mulher achou estreita
A terra, em que inocente adormeceu;
Para mundos etéreos se indireita;
É o cantor do céu.

Voltou depressa, que encontrou espinhos,
Julgando achar esplêndidos troféus:
Sentou-se sobre o marco dos caminhos;
É o cantor de Deus.

E, solitário, co’olhar aflito
Fitado lá na abóbada dos céus;
E nas faces o pranto do proscrito...
É o cantor de Deus.

(Enlevos, 1859.)


NELSON ASCHER (1958 - )

Nelson Ronny Ascher é um poeta, tradutor e jornalista brasileiro. Cursou um ano de medicina, para enfim seguir o curso de administração da Fundação Getúlio Vargas e posteriormente pós-graduação em semiótica na PUC-SP. Colabora com o jornal Folha de S. Paulo desde a década de 1980, escrevendo sobre literatura, cinema e política. Hoje sua coluna é publicada às segundas-feiras no caderno Ilustrada. Em 1988/89 criou a Revista USP e se tornou seu editor, cargo no qual permaneceu até 94. Parte de seus artigos está reunida em Pomos da Discórdia (1993). Como poeta lançou Ponta da língua (1983), Sonho da Razão (1993), Algo de Sol (1996) e Parte Alguma (2005). Suas traduções estão reunidas em O Lado Obscuro (1996) e Poesia Alheia (1998). Colaborou com Boris Schnaiderman na tradução de A Dama de Espadas, de Pushkin.







MEU CORAÇÃO

         "Mein Herz, mein Herz ist traurig"
                                                            Heine



Se tenho um coração maior que
o mundo, por que seus ventrículos
fecham-se em pontos tão ridículos
quando oxigênio algum retoque

as carências da carne? Aparte
isso, o lipídio sujo encarde o
sangue que irriga o miocárdio
por dentro até que o seu enfarte

maciço torne enfim as várias
figuras líricas, diletas—
letais. Dizei-me, enfim, poetas:
o amor entope as coronárias?

De Da ponta da língua (1983)

 ***




AMOR

O olhar desapropria
a forma alheia, o ouvido
sequestra a voz alheia,
o olfato rapta o odor

alheio, o paladar
rouba o sabor alheio,
o tato furto a carne
alheia, ou seja, a própria;

reluz o olhar alheio
do visto em outro, ecoa
o ouvido alheio um outro,
rescende o olfato alheio

a um outro, sabe a um outro
o paladar alheio,
tateia o tato alheio
um outro, ou seja, o mesmo.

                   De O sonho da razão (1993)

 ***




MÁQUINAS

Se — máquinas precisas
que somos de morrer —
nossa função implica
memória ininterrupta,

por que, afinal, possuis
(lubrificadamente
contrátil entre as pemas)
o teu lagar de amnésia?

De Algo de sol (1996)