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João
Cabral de Melo Neto nasceu na cidade de
Recife, Pernambuco, no dia 09 de janeiro de 1920, na rua da Jaqueira (depois
Leonardo Cavalcanti), segundo filho de Luiz Antônio Cabral de Melo e de Carmem
Carneiro-Leão Cabral de Melo. Primo, pelo lado paterno, de Manuel
Bandeira e, pelo lado materno, deGilberto Freyre. Passa a
infância em engenhos de açúcar. Primeiro no Poço do Aleixo, em São
Lourenço da Mata, e depois nos engenhos Pacoval e Dois Irmãos, no município de
Moreno. Em 1930, com a
mudança da família para Recife, inicia o curso primário no Colégio
Marista. João Cabral era um amante do futebol, tendo sido
campeão juvenil pelo Santa Cruz Futebol Clube em 1935. Foi na Associação
Comercial de Pernambuco, em 1937, que obteve seu primeiro emprego, tendo depois
trabalhado no Departamento de Estatística do Estado. Já com 18 anos, começa a
freqüentar a roda literária do Café Lafayette, que se reúne em volta de Willy
Lewin e do pintor Vicente do Rego Monteiro, que regressara de Paris
por causa da guerra. Em 1940 viaja com a
família para o Rio de Janeiro, onde conhece Murilo Mendes. Esse o
apresenta a Carlos Drummond de Andrade e ao círculo de intelectuais que se
reunia no consultório de Jorge de Lima. No ano seguinte, participa
do Congresso de Poesia do Recife, ocasião em que apresenta suasConsiderações
sobre o poeta dormindo. 1942 marca a
publicação de seu primeiro livro, Pedra do Sono. Em novembro
viaja, por terra, para o Rio de Janeiro. Convocado para servir à
Força Expedicionária Brasileira (FEB), é dispensado por motivo de saúde. Mas
permanece no Rio, sendo aprovado em concurso e nomeado Assistente de Seleção do
DASP (Departamento de Administração do Serviço Público). Freqüenta, então,
os intelectuais que se reuniam no Café Amarelinho e Café Vermelhinho, no Centro
do Rio de Janeiro. Publica Os três mal-amadosna Revista
do Brasil. O
engenheiro é publicado em 1945, em edição
custeada por Augusto Frederico Schmidt. Faz concurso para a
carreira diplomática, para a qual é nomeado em dezembro. Começa a trabalhar
em 1946, no Departamento Cultural do Itamaraty, depois no Departamento Político
e, posteriormente, na comissão de Organismos Internacionais. Em fevereiro,
casa-se com Stella Maria Barbosa de Oliveira, no Rio de Janeiro. Em
dezembro, nasce seu primeiro filho, Rodrigo. É removido, em 1947,
para o Consulado Geral em Barcelona, como vice-cônsul. Adquire uma pequena
tipografia artesanal, com a qual publica livros de poetas brasileiros e
espanhóis. Nessa prensa manual imprime Psicologia da composição. Nos
dois anos seguintes ganha dois filhos: Inês e Luiz,
respectivamente. Residindo na Catalunha, escreve seu ensaio sobre Joan
Miró, cujo estúdio freqüenta. Miró faz publicar o
ensaio com texto em português, com suas primeiras gravuras em madeira. Removido para o
Consulado Geral em Londres, em 1950, publica O cão sem plumas. Dois
anos depois retorna ao Brasil para responder por inquérito onde é acusado de
subversão. Escreve o livro O rio, em 1953, com o qual recebe o
Prêmio José de Anchieta do IV Centenário de São Paulo (em 1954). É colocado em
disponibilidade pelo Itamaraty, sem rendimentos, enquanto responde ao
inquérito, período em que trabalha como secretário de redação do Jornal A
Vanguarda, dirigido por Joel Silveira. Arquivado
o inquérito policial, a pedido do promotor público, vai para Pernambuco com a
família. Lá, é recebido em sessão solene pela Câmara Municipal do Recife. Em 1954 é convidado a
participar do Congresso Internacional de Escritores, em São
Paulo. Participa também do Congresso Brasileiro de Poesia, reunido na
mesma época. A Editora Orfeu publica seus Poemas Reunidos. Reintegrado
à carreira diplomática pelo Supremo Tribunal Federal, passa a trabalhar no
Departamento Cultural do Itamaraty. Duas alegrias em
1955: o nascimento de sua filha Isabel e o recebimento do Prêmio Olavo Bilac da
Academia Brasileira de Letras. A Editora José Olympio publica, em 1956, Duas
águas, volume que reúne seus livros anteriores e os inéditos: Morte
e vida severina, Paisagens com figuras e Uma faca só lâmina.Removido
para Barcelona, como cônsul adjunto, vai com a missão de fazer pesquisas
históricas no Arquivo das Índias de Sevilha, onde passa a residir. Em 1958 é removido
para o Consulado Geral em Marselha. Recebe o prêmio de melhor autor no
Festival de Teatro do Estudante, realizado no Recife. Publica em Lisboa
seu livro Quaderna, em 1960. É removido para Madri, como
primeiro secretário da embaixada. Publica, em Madri, Dois
parlamentos. Em 1961 é nomeado
chefe de gabinete do ministro da Agricultura, Romero Cabral da Costa, e passa a
residir em Brasília. Com o fim do governo Jânio Quadros,
poucos meses depois, é removido outra vez para a embaixada em Madri. A
Editora do Autor, de Rubem Braga e Fernando Sabino, publicaTerceira
feira, livro que reúne Quaderna, Dois parlamentos, ainda
inéditos no Brasil, e um novo livro: Serial. Com a mudança do
consulado brasileiro de Cádiz para Sevilha, João Cabralmuda-se para
essa cidade, onde reside pela segunda vez. Continuando seu vai-e-vem pelo
mundo, em 1964 é removido como conselheiro para a Delegação do Brasil junto às
Nações Unidas, em Genebra. Nesse ano nasce seu quinto filho, João. Como ministro
conselheiro, em 1966, muda-se para Berna. O Teatro da Universidade
Católica de São Paulo produz o auto Morte e Vida Severina, com
música de Chico Buarque de Holanda, primeiro encenado em várias cidades
brasileiras e depois no Festival de Nancy, no Théatre des Nations, em Paris e,
posteriormente, em Lisboa, Coimbra e Porto. Em Nancy recebe o prêmio de
Melhor Autor Vivo do Festival. Publica A educação pela pedra, que
recebe os prêmios Jabuti; da União de Escritores de São Paulo; Luisa Cláudio de
Souza, do Pen Club; e o prêmio do Instituto Nacional do Livro. É designado
pelo Itamaraty para representar o Brasil na Bienal de Knock-le-Zontew, na
Bélgica. 1967 marca sua volta
a Barcelona, como cônsul geral. No ano seguinte é publicada a primeira
edição de Poesias completas. É eleito, em 15 de agosto de
1968, para a Academia Brasileira de Letras na vaga de AssisChateaubriand. É
recebido em sessão solene pela Assembléia Legislativa de Pernambuco como membro
do Conselho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais (SBAT). Toma posse na
Academia em 06 de maio de 1969, na cadeira número 6, sendo recebido por José
Américo de Almeida. A Companhia Paulo Autranencena Morte
e vida severina em diversas cidades do Brasil. É removido para a
embaixada de Assunção, no Paraguai, como ministro conselheiro. Torna-se
membro da Hispania Society of America e recebe a comenda da Ordem de Mérito
Pernambucano. Após três anos em
Assunção, é nomeado embaixador em Dacar, no Senegal, cargo que exerce
cumulativamente com o de embaixador da Mauritânia, no Mali e na Giné-Conakry. Em 1974 é agraciado
com a Grã-Cruz da Ordem de Rio Branco. No ano seguinte publica Museu de
Tudo, que recebe o Grande Prêmio de Crítica da Associação Paulista de
Críticos de Arte. É agraciado com a Medalha de Humanidades do Nordeste. Em 1976 é condecorado
Grande Oficial da Ordem do Mérito do Senegal e, em 1979, como Grande Oficial da
Ordem do Leão do Senegal. É nomeado embaixador em Quito, Equador e publica A
escola das facas. A convite do
governador de Pernambuco, vai a Recife (em 1980) para fazer o discurso
inaugural da Ordem do Mérito de Guararapes, sendo condecorado com a Grã-Cruz da
Ordem. Ali é inaugurada uma exposição bibliográfica de sua obra, no
Palácio do Governo de Pernambuco, organizada por Zila Mamede. Recebe a
Comenda do Mérito Aeronáutico e a Grã-Cruz do Equador. No ano seguinte vai
para Honduras, como embaixador. Publica a antologiaPoesia
crítica. Em 1982 é agraciado
com o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. Vai para a cidade do Porto, em Portugal, como cônsul
geral. Recebe o Prêmio Golfinho de Ouro do Estado do Rio de Janeiro.
Publica Auto do frade, escrito em Tegucigalpa. Ganha o Prêmio Moinho
Recife, em 1984 e, no ano seguinte, publica os poemas de Agrestes. Nesse
livro há uma sessão dedicada à morte ("A indesejada das
gentes"). Em 1986 é agraciado com o título de Doutor Honoris Causa
pela Universidade Federal de Pernambuco. Sua esposa, Stella Maria, falece no
Rio de Janeiro. João Cabral reassume o Consulado Geral no
Porto. Casa-se em segundas núpcias com a poeta Marly de Oliveira. Em 1987 publica Crime
na Calle Relator, poemas narrativos. Recebe o prêmio da União
Brasileira de Escritores. É removido para o Rio de Janeiro. Em Recife, no ano de
1988, lança sua antologia Poemas pernambucanos. Publica, também, o
segundo volume de poesias completas: Museu de tudo e depois. Recebe
o Prêmio da Bienal Nestlé de Literatura pelo conjunto da obra, e o Prêmio Lily
de Carvalho da ABCL, Rio de Janeiro. Aposenta-se como
embaixador em 1990 e publica Sevilha andando. É eleito
para a Academia Pernambucana de Letras, da qual havia recebido, anos antes, a
medalha Carneiro Vilela. Recebe os seguintes prêmios: Criadores de
Cultura da Prefeitura do Recife, Luis de Camões (concedido conjuntamente pelos
governos de Portugal e do Brasil), em Lisboa. É condecorado com a Grã-Cruz
da Ordem do Mérito Judiciário e do Trabalho. A Faculdade Letras da Universidade
Federal do Rio de Janeiro publica Primeiros Poemas. Outros prêmios: Pedro
Nava (1991) pelo livro Sevilha andando; Casa das Américas,
concedido pelo Estado de São Paulo (1992); e também nesse ano o Neustadt
International Prize for Literature, da Universidade de Oklahoma. Viaja a
Sevilha para representar o presidente da República nas comemorações do dia 7 de
Setembro, que tiveram lugar na Exposição do IV Centenário da Descoberta da
América. No Pavilhão do Brasil, foi distribuída sua antologia Poemas
sevilhanos, em edição especial. No Rio de Janeiro, na Casa da Espanha,
recebe do embaixador espanhol a Grã-Cruz da Ordem de Isabel, a Católica. Em 1993 recebe o
Prêmio Jabuti, instituído pela Câmara Brasileira do Livro. João
Cabral era atormentado por uma dor de cabeça
que não o deixava de forma alguma. Ao saber, anos atrás, que sofria de uma
doença degenerativa incurável, que faria sua visão desaparecer aos poucos, o
poeta anunciou que ia parar de escrever. Já em 1990, com a finalidade de
ajudá-lo a vencer os males físicos e a depressão, Marly, sua
segunda esposa, passa a escrever alguns textos tidos como de autoria do
biografado. Conforme declarações de amigos, escreveu o discurso de
agradecimento feito pelo autor ao receber o Prêmio Luis de Camões, considerado
o mais importante prêmio concedido a escritores da língua portuguesa, entre
outros. Foi a forma encontrada para tentar tirá-lo do estado depressivo em que
se encontrava. Como não admirava a música, o autor foi perdendo também a
vontade de falar ("Não tenho muito o que dizer",
argumentava). Era, sem dúvida, o nosso mais forte concorrente ao prêmio
Nobel, com diversas indicações dos mais variados segmentos de nossa
sociedade.
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Cemitério
Pernambucano
(Nossa
Senhora da Luz)
Nesta
terra ninguém jaz,
pois também não jaz um rio
noutro rio, nem o mar
é cemitério de rios.
Nenhum dos mortos daqui
vem vestido de caixão.
Portanto, eles não se enterram,
são derramados no chão.
Vêm em redes de varandas
abertas ao sol e à chuva.
Trazem suas próprias moscas.
O chão lhes vai como luva.
Mortos ao ar-livre, que eram,
hoje à terra-livre estão.
São tão da terra que a terra
nem sente sua intrusão.
***
Poema(s)
da Cabra
Nas margens do Mediterrâneo
não se vê um palmo de terra
que a terra tivesse esquecido
de fazer converter em pedra.
Nas margens do Mediterrâneo
Não se vê um palmo de pedra
que a pedra tivesse esquecido
de ocupar com sua fera.
Ali, onde nenhuma linha
pode lembrar, porque mais doce,
o que até chega a parecer
suave serra de uma foice,
não se vê um palmo de terra
por mais pedra ou fera que seja,
que a cabra não tenha ocupado
com sua planta fibrosa e negra.
1
A
cabra é negra. Mas seu negro
não é o negro do ébano douto
(que é quase azul) ou o negro rico
do jacarandá (mais bem roxo).
O negro da cabra é o negro
do preto, do pobre, do pouco.
Negro da poeira, que é cinzento.
Negro da ferrugem, que é fosco.
Negro do feio, às vezes branco.
Ou o negro do pardo, que é pardo.
disso que não chega a ter cor
ou perdeu toda cor no gasto.
É o negro da segunda classe.
Do inferior (que é sempre opaco).
Disso que não pode ter cor
porque em negro sai mais barato.
2
Se
o negro quer dizer noturno
o negro da cabra é solar.
Não é o da cabra o negro noite.
É o negro de sol. Luminar.
Será o negro do queimado
mais que o negro da escuridão.
Negra é do sol que acumulou.
É o negro mais bem do carvão.
Não é o negro do macabro.
Negro funeral. Nem do luto.
Tampouco é o negro do mistério,
de braços cruzados, eunuco.
É mesmo o negro do carvão.
O negro da hulha. Do coque.
Negro que pode haver na pólvora:
negro de vida, não de morte.
3
O
negro da cabra é o negro
da natureza dela cabra.
Mesmo dessa que não é negra,
como a do Moxotó, que é clara.
O negro é o duro que há no fundo
da cabra. De seu natural.
Tal no fundo da terra há pedra,
no fundo da pedra, metal.
O negro é o duro que há no fundo
da natureza sem orvalho
que é a da cabra, esse animal
sem folhas, só raiz e talo,
que é a da cabra, esse animal
de alma-caroço, de alma córnea,
sem moelas, úmidos, lábios,
pão sem miolo, apenas côdea.
4
Quem
já encontrou uma cabra
que tivesse ritmos domésticos?
O grosso derrame do porco,
da vaca, do sono e de tédio?
Quem encontrou cabra que fosse
animal de sociedade?
Tal o cão, o gato, o cavalo,
diletos do homem e da arte?
A cabra guarda todo o arisco,
rebelde, do animal selvagem,
viva demais que é para ser
animal dos de luxo ou pajem.
Viva demais para não ser,
quando colaboracionista,
o reduzido irredutível,
o inconformado conformista.
5
A
cabra é o melhor instrumento
de verrumar a terra magra.
Por dentro da serra e da seca
não chega onde chega a cabra.
Se a serra é terra, a cabra é pedra.
Se a serra é pedra, é pedernal.
Sua boca é sempre mais dura
que a serra, não importa qual.
A cabra tem o dente frio,
a insolência do que mastiga.
Por isso o homem vive da cabra
mas sempre a vê como inimiga.
Por isso quem vive da cabra
e não é capaz do seu braço
desconfia sempre da cabra:
diz que tem parte com o Diabo.
6
Não
é pelo vício da pedra,
por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.
A cabra é trancada por dentro.
Condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.
Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.
Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.
7
A
vida da cabra não deixa
lazer para ser fina ou lírica
(tal o urubu, que em doces linhas
voa à procura da carniça).
Vive a cabra contra a pendente,
sem os êxtases das decidas.
Viver para a cabra não é
re-ruminar-se introspectiva.
É, literalmente, cavar
a vida sob a superfície,
que a cabra, proibida de folhas,
tem de desentranhar raízes.
Eis porque é a cabra grosseira,
de mãos ásperas, realista.
Eis porque, mesmo ruminando,
não é jamais contemplativa.
8
O
núcleo de cabra é visível
por debaixo de muitas coisas.
Com a natureza da cabra
outras aprendem sua crosta.
Um núcleo de cabra é visível
em certos atributos roucos
que têm as coisas obrigadas
a fazer de seu corpo couro.
A fazer de seu couro sola,
a armar-se em couraças, escamas:
como se dá com certas coisas
e muitas condições humanas.
Os jumentos são animais
que muito aprenderam com a cabra.
O nordestino, convivendo-a,
fez-se de sua mesma casta.
9
O
núcleo de cabra é visível
debaixo do homem do Nordeste.
Da cabra lhe vem o escarpado
e o estofo nervudo que o enche.
Se adivinha o núcleo de cabra
no jeito de existir, Cardozo,
que reponta sob seu gesto
como esqueleto sob o corpo.
E é outra ossatura mais forte
que o esqueleto comum, de todos;
debaixo do próprio esqueleto,
no fundo centro de seus ossos.
A cabra deu ao nordestino
esse esqueleto mais de dentro:
o aço do osso, que resiste
quando o osso perde seu cimento.
*
O
Mediterrâneo é mar clássico,
com águas de mármore azul.
Em nada me lembra das águas
sem marca do rio Pajeú.
As ondas do Mediterrâneo
estão no mármore traçadas.
Nos rios do Sertão, se existe,
a água corre despenteada.
As margens do Mediterrâneo
parecem deserto balcão.
Deserto, mas de terras nobres
não da piçarra do Sertão.
Mas não minto o Mediterrâneo
nem sua atmosfera maior
descrevendo-lhe as cabras negras
em termos da do Moxotó.
***
UM OVO DE GALINHA
I
Ao
olho mostra a integridade
de uma coisa num bloco, um ovo.
Numa só matéria, unitária,
maciçamente ovo, num todo.
Sem
possuir um dentro e um fora,
tal como as pedras, sem miolo:
é só miolo: o dentro e o fora
integralmente no contorno.
No
entanto, se ao olho se mostra
unânime em si mesmo, um ovo,
a mão que o sopesa descobre
que nele há algo suspeitoso:
que
seu peso não é o das pedras,
inanimado, frio, goro;
que o seu é um peso morno, túmido,
um peso que é vivo e não morto.
II
O
ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.
E
que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas
cujas
formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.
No
entretanto, o ovo, e apesar
de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.
III
A
presença de qualquer ovo,
até se a mão não lhe faz nada,
possui o dom de provocar
certa reserva em qualquer sala.
O
que é difícil de entender
se se pensa na forma clara
que tem um ovo, e na franqueza
de sua parede caiada.
A
reserva que um ovo inspira
é de espécie bastante rara:
é a que se sente ante um revólver
e não se sente ante uma bala.
É
a que se sente ante essas coisas
que conservando outras guardadas
ameaçam mais com disparar
do que com a coisa que disparam.
IV
Na
manipulação de um ovo
um ritual sempre se observa:
há um jeito recolhido e meio
religioso em quem o leva.
Se
pode pretender que o jeito
de quem qualquer ovo carrega
vem da atenção normal de quem
conduz uma coisa repleta.
O
ovo porém está fechado
em sua arquitetura hermética
e quem o carrega, sabendo-o,
prossegue na atitude regra:
procede
ainda da maneira
entre medrosa e circunspeta,
quase beata, de quem tem
nas mãos a chama de uma vela.