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sexta-feira, 8 de maio de 2015

EMMANUEL SANTIAGO (1984 - )


Emmanuel Santiago é mineiro de São Lourenço. Poeta e crítico literário, é autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).






Origami

a Tati A. Toumouchi



De papel de seda finíssimo,
fiz teu corpo: fibra a fibra
modelado na pétala, forma
de pura textura e volume.

Sobre a límpida e mínima
película, moldei teus seios
em torneios e volutas,
lívidos torvelinhos,

e os dedos se dedicaram
a cada minúcia sinuosa
na delicada dobradura do
sexo, desdobrando lábios
em abismos, labirintos.

Assim te concebo: nua
e toda nuances, criada
da lâmina de sal e espuma
do mar, como as ondas,

que se espiralam peroladas
durante a queda (tens
a idêntica consistência
de uma onda do mar).



***





Soneto filosofante com chavão de ouro



Bem já dizia o sábio Salomão:
é vaidade, vaidade das vaidades,
tudo que ao peito humano persuade
a tanto esforço inútil, nulo e vão,

pois, que de teu suor, não restarão
os frutos, nem o pó, sequer saudade;
tudo se perde e, tão logo se evade,
deixa para trás uma atroz lição:

nada fica, nem fama, nem dinheiro,
nem há, no mundo inteiro, o que persista;
os últimos igualam-se aos primeiros,

anulam-se as derrotas e as conquistas,
que, nesta vida, é tudo passageiro,
exceto o cobrador e o motorista.


***





Sonho recorrente
ou seis passos para um poema surrealista


Assim se sucedeu naquele sonho:
era noite quando uma jovem moça
perguntava-me as horas. Eu lhe disse:
“Não sei não, senhorita, mas é tarde;
não há ninguém na rua, não há nada”.
Ela, então, deu um tiro na cabeça.

Era noite de novo; na cabeça
a sensação de estar vivendo um sonho
como se caminhasse sobre o nada.
Chegou-se a mim aquela jovem moça:
“Morri, ressuscitei; é muito tarde.
Mate-me agora mesmo!”, ela me disse.

Era de noite quando alguém me disse:
“Veja só, estourei minha cabeça
e não posso emendá-la, pois é tarde!”,
e tudo se passava como num sonho.
Diante de mim, aquela jovem moça
estava morta; não dizia nada.

De noite outra vez, não se via nada.
Do escuro, soou uma voz que disse:
“Não se esqueça daquela jovem moça
que levou um balaço na cabeça!”.
Lembrei-me vagamente de algum sonho,
mas não pude retê-lo. Era tarde.

De noite. Muito escuro. Muito tarde.
Já não me lembro mais de quase nada
e vejo as coisas turvas, feito um sonho.
Só sei que certa vez alguém me disse:
“Cuidado! Não atire na cabeça!”.
No chão, jaz o cadáver de uma moça.

Percebo-me: sou uma jovem moça
andando por aí — tarde, bem tarde.
Estou morta e não tenho mais cabeça;
nas mãos, trago um revólver e mais nada.
“Não há ninguém na rua”, alguém me disse.
Não sei se sou real nem sei se sonho.

        É sempre o mesmo sonho, a mesma moça,
        algo que alguém me disse muito tarde,

        um tiro e só. Mais nada na cabeça.