terça-feira, 27 de dezembro de 2011

NÍVIA MARIA VASCONCELLOS (1980- )

Nívia Maria Vasconcellos nasceu em 1980 em Feira de Santana-BA. É especialista em Estudos Literários, tendo finalizado o mestrado em Literatura e Diversidade Cultural, ambos pela UEFS-BA. Publicou o livro de poesia Invisibilidade (MAC, 2002) e o livro de contos ... para não suicidar (Littera, 2006). Ganhou o 7º Festival Vozes da Terra de Feira de Santana-BA, com a música Soneto que não queria existir. Logrou, em 2008, o Prêmio CDL de Literatura, que editou e lançou seu livro Escondedouro do Amor e Outros Versos sob a Espera (CDL, 2009). Além de poetisa e contista, é professora e integrante do grupo de declamação OsBocasDo Inferno.



Vacuidade



I

e olho a rodoviária...

(sempre esperas e despedidas)

percebo, no meu olhar de espanto,
o arrepio que faz a minha alma
que neles é ausência

... inexistir.



II

caminho...

gentes e gentes por mim passam
(deserto que me acompanha)

em diabólicos pensares
cada rosto é, a princípio,

este Deus que me abandona.



III

é sempre essa mesma fagulha,

a vida...

sempre esse não sei o quê
que me tortura.



IV

o tempo...
não adianta falar dele

não há propriedade, só certeza
de sua constância e indiferença

todo tempo
como a rodoviária
é sempre um eterno adeus.



V

e cada solidão é
assim
o plágio da morte

espera e ira
no itinerário inseguro...



***





OUTROS VERSOS SOB A ESPERA


O tempo levou minha crença,
Levou minha fé,
Levou as lembranças que habitavam minha sala
E levou as horas da minha esperança.

O tempo, insistentemente,  
Levou-me o livro que a estante  
De meu ser guardava com cautela e medo,
Esse tempo levou-me até o medo,
E outros sentimentos que me tornavam humana.

O tempo levou o meu equilíbrio
E a harmonia dos meus ornamentos,
Levou os meus segredos
E o resto do sorriso que meus lábios ensaiavam dar.

O tempo levou minhas poesias,
Minhas leituras,
Levou minha atenção,
O meu poder de chorar;
Levou até mesmo a minha nudez.

O tempo (Este tempo!)
Levou-me... A tua volta,
A lágrima e a existência.


***


Soneto que não queria existir (VI) 


Toque, Amor, tua boca na minha pele
que não sou apenas o que verseja,
mas também aquele que deseja
tua presença nua a qual meu corpo adere.

Seremos um, ante espelhos invejosos
(vulva, seios, carne, gozo contorcidos;
nossos corpos, voluptuosos, confundidos)
a contemplar nossos mistérios gozosos.

Se amanhã não me quiseres, me esqueças!
mas, hoje, que possuas o corpo meu,
sejas minha, serei teu. Sem desavenças,

que minha vontade não fique neste versejo,
pois minha boca persegue teu beijo. Nu,
apresento-me aqui: escravo do meu desejo.

ORIDES FONTELA (1940-1998)

Orides de Lourdes Teixeira Fontela nasceu em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, em 21 de abril de 1940. Começou a escrever poemas aos sete anos de idade. Como ela mesma dizia, sua família "não tinha base cultural, meu pai era operário analfabeto, de modo que a cultura que peguei foi na base do ginásio, escola normal e leitura". Aos 27 anos, deixou sua cidade natal e veio morar em São Paulo, com dois sonhos na cabeça: entrar na USP e publicar um livro. Cumpriu os dois: fez Filosofia e publicou seu primeiro livro, Transposição , com a ajuda do professor Davi Arrigucci Jr., seu conterrâneo. Depois de formada, foi professora do primário e bibliotecária em escolas da rede estadual de ensino. Publicou ainda Helianto (1973), Alba (1983), Rosácea (1986), Trevo 1969-1988 (1988) e Teia (1996). Com Alba , recebeu o prêmio Jabuti de Poesia, em 1983; e com Teia , recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, em 1996. Sempre com dificuldades financeiras, no final da vida, acabou sendo despejada de seu apartamento no centro da cidade e foi viver com sua amiga Gerda na Casa do Estudante, um velho prédio na Avenida São João. Era uma pessoa irritadiça e muitas vezes se meteu em encrencas, brigando com seus melhores amigos. Morreu em Campos de Jordão, aos 58 anos, no dia 4 de novembro de 1998, de insuficiência cardiopulmonar, na Fundação Sanatório São Paulo. 




FALA


Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será.
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade)


***


A ESTRELA DA TARDE


A estrela da tarde está
madura
e sem nenhum perfume

A estrela da tarde é
infecunda
e altíssima

Depois da estrela da tarde
so há:
o silêncio.

***



 CARTILHA


Foi de poesia
lição
primeira:
"a arara morreu
na
aroeira".
 


FRANCISCA JÚLIA (1871-1920)

Francisca Júlia da Silva Munster (1871-1920) nasceu em Eldorado Paulista (SP) e faleceu em São Paulo. Sua estreia literária deu-se em 1891, nas páginas do jornal O Estado de São Paulo. Ao longo dos anos, publicou poemas em jornais e revistas, destacando-se pela alta qualidade dos versos, segundo os critérios do tempo. Francisca Júlia publicou quatro livros ao longo da vida. Seu primeiro e mais conhecido é Mármores, de 1895. Nas sequência compôs um volume de versos para crianças, intitulado O livro da infância (1899) e Esfinges (1903). Em 1912, junto com seu irmão, Júlio da Silva, o publicou Alma infantil. A crítica tem destacado usualmente, seguindo nisso a primeira recepção da sua obra, as características parnasianas da poesia de Francisca Júlia, deixando em segundo plano aquilo que João Ribeiro notara no prefácio a esse livro de estréia: a presença de significativos elementos simbolistas. A leitura, hoje, da sua obra, confirma a impressão do prefaciador. Embora muitos dos seus sonetos estejam entre os mais bem acabados de sua época e muitos deles se enquadrem nos preceitos da impassibilidade parnasiana (que os melhores parnasianos, como Bilac, sistematicamente infringiram), é igualmente interessante (e talvez até mais, para o gosto de hoje) a parte da sua obra que se aproxima da dicção simbolista. Alguns fatores, herdados em parte da primeira recepção, tem orientado, nem sempre de modo a produzir justiça ao seu talento e à qualidade da sua obra, a avaliação da sua poesia. Um deles é a insistência na condição feminina. No seu tempo, causou muita espécie aquilo que a crítica sua contemporânea identificou como dicção máscula, ou, pelo menos, dicção não feminina – entendido, nos moldes do tempo, o feminino como predominantemente sentimental e mesmo inferior, por condição, em termos estéticos. Recentemente, a valorização do feminino parece operar uma inversão nessa perspectiva, deslocando novamente a avaliação da obra para a questão do gênero. Outro fator de perturbação decorreu do fato de que a poeta se suicidou no dia do enterro do marido, deixando apenas em projeto um livro que se chamaria Versos áureos. Logo após a sua morte, organizou-se uma segunda edição de Esfinges (1920) incluindo no conjunto poemas que não fizeram parte da primeira edição, além de uma ampla fortuna crítica, de caráter mais laudatório do que analítico – compreensível naquela circunstância, sob o impacto do gesto extremo. Como Mármores teve edição restrita e a primeira edição de Esfinges era inacessível – Otto Maria Carpeaux registrava, já em 1949, que desse livro não havia exemplar nem na Biblioteca Nacional, nem na Biblioteca Municipal de São Paulo –, essa segunda edição tornou-se a base das apreciações críticas subsequentes, apagando-se, assim, a estrutura significativa que a autora tinha dado às suas obras em volume – especialmente a Mármores. Basta olhar o índice desse primeiro livro de poesia para perceber que a ordem e posição dos poemas obedecem a um desígnio: o livro abre e fecha com sonetos gêmeos, intitulados “Musa impassível”, e se divide em duas partes de extensão igual, separadas por traduções de Goethe e Schiller. A primeira parte e a última possuem poemas numerados de 1 a 18 e contrastam no tom, sendo a segunda a que traz as marcas decadentistas, apontadas por João Ribeiro. Da mesma forma, Esfinges é um livro planejado, e não uma recolha. Inclui poemas de Mármores, mas o rearranjo produz novos sentidos para eles. O exemplo mais claro é a junção do primeiro e último soneto de Mármores num único poema, intitulado “Musa impassível”, composto agora dos dois sonetos que tinham esse nome no primeiro livro. Com a disponibilização das primeiras edições, por certo a poesia de Francisca Júlia ganhará nova recepção, e – agora que o preconceito modernista contra a poesia parnasiana e simbolista começa a perder força como padrão único de avaliação literária no Brasil – os muitos poemas de primeiro nível presentes nos dois volumes, bem como a disposição significativa que permite compreendê-los como parte de um desenho maior, poderão ser devidamente apreciados... Com a carioca Gilka Machado e a potiguar Auta de Souza forma o grande trio feminino do pré-modernismo.

 



NOTURNO


Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
se arrasta em direção ao negro cemitério...
à frente, um vulto agita a caçoula do incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
chora no ar o rumor de um misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
da noite se ilumina ao resplendor da lua...
uma estrige soluça; a folhagem farfalha.

E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
noites, acima dele, em silêncio, flutua
o lausperene mudo e súplice das almas.


***


NATUREZA


Um contínuo voejar de moscas e de abelhas
agita os ares de um rumor de asas medrosas;
a Natureza ri pelas bocas vermelhas
tanto das flores más como das boas rosas.

Por contraste, hás de ouvir em noites tenebrosas
o grito dos chacais e o pranto das ovelhas,
brados de desespero e frases amorosas
pronunciadas, a medo, à concha das orelhas...

Ó Natureza, ó Mãe pérfida! tu, que crias,
na longa sucessão das noites e dos dias,
tanto aborto, que se transforma e se renova,

quando meu pobre corpo estiver sepultado,
mãe! transforma-o também num chorão recurvado
para dar sombra fresca à minha própria cova.


***



INVERNO


Outrora, quanta vida e amor nestas formosas
ribas! Quão verde e fresca esta planície, quando,
debatendo-se no ar, os pássaros, em bando,
o ar enchiam de sons e queixas misteriosas!

Tudo era vida e amor. As árvores copiosas
mexiam-se, de manso, ao resfolego brando
da brisa que passava em tudo derramando
o perfume sutil dos cravos e das rosas...

Mas veio o inverno; a vida e amor foram-se em breve...
o ar se encheu de rumor e de uivos desolados...
as árvores do campo, enroupadas de neve,

sob o látego atroz da invernia que corta,
são esqueletos que, de braços levantados,
vão pedindo socorro à primavera morta.




 

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

ERILAINE PEREZ (1979 - )

Erilaine Perez da Silveira é gaúcha, nascida aos 31 dias do mês de março de 1979, na cidade de Santiago. Escritora, professora (apaixonada) de Literatura, funcionária pública do município, curadora do Museu Municipal Pedro Palmeiro, redatora, há seis anos, dos textos comerciais da Rádio Verdes Pampas Fm. Já teve vários poemas e crônicas poéticas publicadas em jornais de circulação da sua cidade e região, inclusive no jornal Zero Hora, de circulação nacional. Também conquistou colocação em alguns concursos de contos. Foi colaboradora no projeto Para ler Santiago melhor: poesia nos muros, realizado pelo Curso de Letras, da universidade local; voluntária no Projeto Amigos da Biblioteca, em que teve a oportunidade de realizar oficinas literárias em todas as escolas da rede municipal e em grande parte das da rede estadual de ensino da sua cidade. Colaboradora do projeto Rua dos Poetas, realizado pela prefeitura municipal, organizando a Antologia II: Rua dos Poetas, cujo objetivo se funda na criação de uma identidade poética para a cidade que leva o epíteto de “Terra dos Poetas”. Mantém, desde 2008, o blog intitulado Rúbida Rosa, em que publica os seus textos e "descobertas" acerca do universo literário e de onde surgiu a inspiração para a edição de seu primeiro livro, sob o mesmo nome, lançado na 13ª Feira do Livro de Santiago, no ano de 2011.







JANEIRO


janeiro zumbe
na janela
zanza nas saias

janeiro ginga
na noite
zoa nas sacadas

janeiro sua
nos copos
ruge nos estádios

janeiro zine
nos ouvidos
tine na carne

janeiro
zumbe e zanza
ginga e zoa
zine e tine

em janeiro
quem se tisne
não há


***


ALMA VELHA

Mote vago que debruça
tantas penas no papiro.
Tudo é lindo, colorido,
Enquanto a rosa não murcha.

Perde-se toda ventura
na mocidade que expira.
O sentimento se esfuma
numa promessa que finda.

Tudo que vive fenece,
levado pela corrente
desse rio que obedece

ao mais profundo, onde as águas,
paradas, são para sempre
repositório de nadas.


***



ARTE CELESTE

ausência
de
           azul

o pito
de
           deus
acinzenta
o céu

a culpa
             veste
mistérios no
             limbo

a redenção
            dança
no apocalipse

o homem
           vive
           pelo perdão
 da morte

JOÃO CARLOS TEIXEIRA GOMES (1936- )

João Carlos Teixeira Gomes é ensaísta, poeta, professor de literatura brasileira na Universidade Federal da Bahia. Em 1985 publicou um livro sobre Gregório de Mattos e a tradição da sátira peninsular (Gregório de Mattos, o Boca de Brasa) que foi muito bem recebido pela crítica e pelo público e que até hoje é referência para os estudos do “Boca do Inferno”. Outro trabalho de sua autoria, também publicado, foi Camões Contestador e Outros Ensaios. Além desses, participou, em colaboração, dos livros Dezoito Contistas Baianos, Da Ideologia do Pessimismo à Ideologia da Esperança, A Obsessão Barroca da Morte de Manuel Bernardes e Quevedo. É também o autor do polêmico Memórias das Trevas - Uma devassa na vida de Antônio Carlos Magalhães, Geração Editorial - São Paulo, ocupa a cadeira nº. 15 da Academia de Letras da Bahia. Tem três livros de poesias publicados: Ciclo Imaginário, O Domador de Gafanhotos e A Esfinge Contemplada. Deste último, lançado pela Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988. Seu próximo livro de poemas, de onde este belo soneto Da ilusão feminina, nos foi gentilmente cedido, está no prelo...





DA ILUSÃO FEMININA (Inédito)*


 Para além da beleza que enfeitiça,
és a musa que nenhuma outra iguala
e se perco a razão nessa premissa,
pior é, por te amar, perder a fala.

Do bravo amor na afortunada liça,
com os segredos que o meu verso cala,
sinto o ardor que o coração atiça,
sinto a paixão que teu perfume exala.

Ó feiticeira que me tens domado,
rendido à tentação dos olhos claros,
dúbios focos de amor desesperado,

nada pode conter teus artifícios,
pois se usas seduzir em lances raros
nas artes de iludir tens dons propícios.


***




CARTA ELEGÍACA
A GERÂNIA MIRAGAIA




I

Amo-te porque detesto a exatidão.
Porque tens o apelo das coisas imprevisíveis.
Como o pôr-do-sol,
que, sendo o mesmo, surpreende todos os dias;
ou a colocação das estrelas
no céu, sujeitas a giros mínimos,
todavia perceptíveis;
a oscilação das marés,
a renovação da natureza.
Nada é tão completo
que não deva mudar a cada momento. 




II


E, na verdade, muda.
Contempla com atenção a paisagem
do teu rosto
para que enfim não te assustem
as tramas do tempo falaz
que te espreita (ávido) da engrenagem das horas.
Jamais a superfície dos espelhos
permitirá segredos a teus olhos atentos.
É ilusão suborná-los.
Neles, a cada manhã,
o exato registro das armadilhas do tempo,
ante cujos enredos
somente os ventos permanecem inalterados
 – porque sopram da Eternidade.
E embora seja algo de leve e de alado
(porque assim é a beleza moça)
obviamente não tens a essência
ou as disponibilidades dos ventos.




III

Ah, os ventos. Quem os decifra?
Suas rotas são circulares
e por isso imutáveis.
Estes que agora te envolvem as formas efêmeras
são os mesmos que desfolharam as árvores do Paraíso no primeiro outono,
varreram o refúgio dos deuses antigos
e os desertos dos profetas,
invadiram as ágoras silenciosas
e se multiplicaram no corredor dos séculos,
ungidos de poder e desdém.
Mais uma vez chegaram para testemunhar
a fragilidade da perecível argila.
Vieram e estão indo,
pois o seu trânsito é ilimitado: tocarão
as gerações sucessivas
até o final dos tempos,
quando de novo soprarão sobre a terra deserdada,
vasto campo de ossos empilhados
após as flagelações do Juízo.
Ama os ventos porque são livres,
mas inveja-os porque são perenes
e continuarão a rodar em desatino,
enquanto a cada instante
murcharão as pétalas da tua beleza,
grande flor temporal que um dia a morte virá colher
para enfeitar a fronte descarnada,
ela que incessante cultiva
nos umbrais da vida sem retorno
os seus buquês de pungência e corrosivo mistério.

***


A PEDRA PERDIDA

Era uma pedra perdida,
de duro calcário espesso.
Era uma pedra in natura.
Não era vidro, nem gesso.
No chão crestado jazia,
alheia às paixões do mundo:
argila da eternidade,
crosta do tempo infecundo.
Cauteloso, examinei-a
tomando-a na mão discreta:
— É algo que somente existe
em sua essência incompleta.
Corra o tempo fugidio
e há de ser sempre o que é:
forma pura que se basta
sem se dar conta nem fé,
massa vã que se empareda
num rude universo tosco,
presa dos próprios limites
contidos no brilho fosco.
Não pensa, não quer, não sonha.
Nada sabe nem aspira.
Mas eu, que choro e que tenho
um coração que delira,
que sinto o vibrar da cólera
e do fervor mais profundo,
eu logo serei fumaça
dissolvida além do mundo,
matéria desativada
ou pó de humana carcaça
— mas a pedra reinará
na glória turva do nada.
Daqui a mais alguns anos
(que depressa hão-de passar)
já serei fumo esvaído
- mas a pedra há de restar.
E assim ficará, invicta,
sem desejos nem remorsos,
pairando com soberbia
no que sobrar dos meus ossos.
Com raiva, num puro assomo,
tomei a pedra na mão
e lancei-a ao mar profundo:
nada buliu na manhã
nem a paz nimbou o mundo.
Pois à muda natureza
são coisas que não consomem
a dureza de uma pedra
e os sentimentos de um homem.



* Registre-se aqui o nosso mais profundo agradecimento ao poeta por ter tão gentilmente nos honrado com este poema ainda inédito de sua lavra... Abraço  amigo ao "Pena de Aço"... João Carlos Teixeira Gomes.



ALPHONSUS DE GUIMARAENS (1870-1921)

Afonso Henrique da Costa Guimarães nasceu em Ouro Preto, 24 de julho de 1870 e morreu em Mariana, 15 de julho de 1921. Filho de Albino da Costa Guimarães, comerciante português, e de Francisca de Paula Guimarães Alvim, sobrinho do poeta Bernardo de Guimarães. Guimaraens Matriculou-se em 1887 no curso de engenharia. Um fato marcante em sua vida foi a perda prematura da prima e noiva Constança, e a morte da moça abalou-o moralmente e fisicamente. Foi, em 1891, para São Paulo, onde matricula-se no curso de Direito da Faculdade do Largo São Francisco, voltou a Minas Gerais e formou-se em direito em 1894, na recém inaugurada Faculdade Livre de Direito de Minas Gerais, que na época funcionava em Ouro Preto. Em São Paulo, colaborou na imprensa e freqüentou a Vila Kyrial, de José de Freitas Vale, onde se reuniam os jovens simbolistas. Em 1895, no Rio de Janeiro, conheceu Cruz e Souza, poeta do qual já admirava e tornou-se amigo pessoal. Também foi juiz substituto e promotor em Conceição do Serro (MG). No ano de 1897, casa-se com Zenaide de Oliveira. Posteriormente, no ano de 1899, estreou na literatura com dois volumes de versos: Septenário das dores de Nossa Senhora e Câmara Ardente, e Dona Mística; ambos de nítida inspiração simbolista. Em 1900 passou a exercer a função de jornalista colaborando em A Gazeta, de São Paulo. Em 1902 publicou Kyriale, sob o pseudônimo de Alphonsus de Guimaraens; esta obra o projetou no universo literário, obtendo assim um reconhecimento, ainda que restrito de alguns raros críticos e amigos mais próximos. Em 1903, os cargos de juizes-substituto foram suprimidos pelo governo do estado, consequentemente Alphonsus perdeu também seu cargo de Juiz, fato que o levou a graves dificuldades financeiras. Após recusar um posto de destaque no jornal A Gazeta, Alphonsus foi nomeado para a direção do jornal político Conceição do Serro, onde também colaboraria seu irmão o poeta Archangelus de Guimaraens , Cruz e Souza e José Severino de Resende. Em 1906, tornou-se Juiz Municipal de Mariana (do de sua esposa Zenaide de Oliveira, com quem teve 15 filhos, dois dos quais também escritores: João Alphonsus e Alphonsus Guimaraens Filho. Devido ao período que viveu em Mariana, ficou conhecido como "O Solitário de Mariana", apesar de ter vivido lá com a mulher e com seus 15 filhos. O apelido foi dado a ele devido ao estado de isolamento completo em que viveu. Sua vida, nessa época, passou a ser dedicada basicamente às atividades de juiz e à elaboração de sua obra poética.




A Catedral


Entre brumas ao longe surge a aurora,
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu risonho
Toda branca de sol.

E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a benção de Jesus.

E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Poe-se a luz a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece na paz do céu tristonho
Toda branca de luar.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"

O céu e todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem acoitar o rosto meu.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.

E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"


***


ISMÁLIA


Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.

No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...

E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava longe do céu...
Estava longe do mar...

E como um anjo pendeu
As asas para voar. . .
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...

As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma, subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...


***


Hão de Chorar por Ela os Cinamomos...

Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão — "Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria.. . "
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: — "Por que não vieram juntos?"



quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

RAQUEL NAVEIRA (1957- )


Raquel Maria Carvalho Naveira Nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de 1957. Formou-se em Direito e Letras pela FUCMT, atual Universidade Católica Dom Bosco, onde exerce o magistério (Literatura Portuguesa e Literatura Latina), desde 1987, pertencendo ao Departamento de Letras. Mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo. Doutoranda em Literatura Portuguesa na USP.  Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e ao PEN CLUBE DO BRASIL. Escreveu vários livros, entre eles: Abadia (poemas, editora Imago,1996) e Casa de Tecla (poemas, editora Escrituras, 1999), indicados ao Prêmio Jabuti de Poesia, pela Câmara Brasileira do Livro. Escreveu ainda o infanto-juvenil, Pele de jambo e o livro de ensaios, Fiandeira. Unindo história  e poesia, publicou os romanceiros Guerra entre irmãos (poemas inspirados na Guerra do Paraguai) e Caraguatá (poemas inspirados na Guerra do Contestado), que se transformou no curta-metragem Cobrindo o céu de sombra, monólogo com a atriz Christiane Tricerri, sob a direção de Célio Grandes. Lançou o CD Fiandeiras do Pantanal, onde declama seus poemas, acompanhada pela voz e a craviola da cantora Tetê Espíndola.  A obra de Raquel Naveira tem enorme fortuna crítica, sendo reconhecida e apreciada por escritores e críticos como Fábio Lucas, Lygia Fagundes Telles, Nelly Novaes Coelho, Antônio Houaiss, Lêdo Ivo...  entre outros. 





CONFISSÃO DE MARIANA

(a  Sóror Mariana Alcoforado, que nasceu em Beja, 1640. Desde menina professou no Convento de Nossa Senhora da Conceição em sua cidade natal. Em 1663, conhece Chamilly, oficial  francês servindo em Portugal, durante as guerras da Restauração. Apaixonam-se. Ele regressa à França por ordens militares. Trocam cartas, das quais só ficaram as escritas pela freira, que falece em 1723, após dolorosa penitência)




Foi aqui,
Neste convento
Cheio de varandas
E flores perfumadas,
Perto daquela fonte,
Daquela bacia esculpida,
Que eu, freira clarissa,
Conheci o amor da minha vida:
O oficial francês Chamilly,
Paixão proibida,
Insana,
Incontrolada.


Foi aqui,
Neste convento,
Na cela e no porão
Que me entreguei a ele,
Sufocando-o com meu manto negro
Brocado de estrelas.


Depois que ele partiu,
Foi daqui,
Deste convento,
Que enviei a ele cartas
Tão tensas e dramáticas
Que estilhaçaram meus nervos
Em transes e sangrias.


Foi deste banco de mármore,
Perto do laranjal, que,
Traída e abandonada,
Escrivã sem pejo,
Expeli toda minha fúria,
Minha ânsia,
Meu ódio
De fêmea pagã
Queimando de desejo.


Escrevi:
“A esperança me proporciona prazer,
  Só quero sentir a minha dor,
  Que seria de mim sem esse amor e esse ódio
  Que enchem o meu coração?
  O que vai ser de mim?
  Morro de vergonha.”


Neste convento
Feneço
Na carne e no espírito,
Eu, amante suprema,
De doçura extrema,
Ofereci-me a um cínico,
A um ingrato
E por ele me mato
Como Cristo
Nas dores do calvário.


***


                      LORD BYRON EM SINTRA



Era ele,
Lord Byron,
Na carruagem que seguia
Pela serra
Rumo ao mosteiro suspenso,
Encostado à penedia.

Era ele,
Lord Byron,
O poeta romântico,
Buscando a liberdade
Com a paixão
De uma eterna idolatria.

Eu o vi:
A face lívida,
A capa negra de vampiro,
O sorriso de D. Juan cínico
Que enfeitiça a alma das mulheres
Na mais cruel vilania.

Era ele,
Na estrada de Sintra,
Naquele glorioso Éden,
Naquelas ruínas melancólicas,
Ele, tão jovem e propenso à desgraça,
Mestre supremo do ócio e do spleen,
Imerso naquela verdura
E no perfume das camélias.


Era ele,
Cheio de carisma e beleza,
Aristocrata da tormenta.


Foi depois daquele passeio que ele escreveu:
“_ Há um prazer nas florestas desconhecidas,
Um entusiasmo na costa solitária,
Uma sociedade onde ninguém penetra;
Amo não menos o homem, mas também a natureza.”






Lord Byron...
Ninguém foi tão disputado quanto ele
Desde os tempos da Guerra de Troia,
Eu o vi
Em sua viagem por terras da Ibéria,
Subindo em direção ao lago,
Como um anjo negro,
Maestro de uma gótica sinfonia.


A carruagem sumiu na neblina
E era emoção
O que eu sentia.


***



LEMBRANÇA DO RIO
 

Da janela da cozinha
Eu via
O rio
Ou era o rio que me espiava,
Espichando o dorso de lama,
Cobra
De couro liso.
 
Enquanto lavava louça,
O rio,
Escorregadio,
Levava nas águas sem espuma,
Os meus desejos,
Sentimentos
E desvios.
 
De vez em quando,
Desprendia-se da árvore
Um bugio,
O rio tremia,
A pele eriçada
Num calafrio.
 
Eu via
E pensava:
Sou moça,
Não vou morrer
Se me atiro
Nesse rio;
Não há dor,
Queimadura,
Lamento
Que ele não cure,
O seu balbucio
É paz e esquecimento.
 
Ó substância úmida!
Ó existência precária!
Meu corpo escoa
Como água
Como se fosse
Meu próprio rio.