segunda-feira, 11 de setembro de 2017

SILVÉRIO DUQUE (1978 - )

Silvério Duque nasceu em Feira de Santana, aos 31 de março de 1978. É professor de Literatura Brasileira  e História da Arte, formado em Letras Vernáculas pela Universidade Estadual de Feira de Santana. Músico (clarinetista), foi coordenador da Escola de Música da Filarmônica Euterpe Feirense. É poeta, com vários textos publicados em diversos veículos de comunicação especializados como os Jornais A Tarde, Tribuna Feirense, Dicta & Contradicta, Jornal Opção, entre outros. É Autor dos livros: A pele de Esaú (Via Litterarum, 2016), Ciranda de Sombras (É Realizações, 2011), Do coração dos malditos (Mondrongo, 2014), Cantares de Arrumação – organizador – (Mondrongo, 2014), e seus mais novos livros À sombra dos emparedados e Fartura e Ossos estão no prelo.











SONETO DE CONTEMPLAÇÃO
(SOBRE UM TEMA DE ELPÍDIO FONSECA)






 Eu vi teu corpo nu à luz da lua
ou o brilho teu na lua refletido...?!
Por certo eu contemplara enternecido
a lua que na terra se fez nua.

Depois saímos luminando a rua
com o brilho de teu corpo revivido
e te entregaste a mim com o olhar tão vívido
como fizera a minha carne à tua.

Neste mesmo fulgor nos completamos
com a chama ideal já transformada
num ir e vir de luz que deslumbramos.

E assim permanecemos neste enleio:
tu - sarça imarcescível e alumiada
eu - a derramar estrelas no teu seio.





Feira de Santana/Candeias 23-24 de julho de 2015.








***


TRÊS SONETOS NADA CONVENCIONAIS





 I
[RAZÃO X FELICIDADE]



 – Minha vida com Maria? Uma desgraça!
Desconchavo de amor e de tormento.
O espaço que ocupei em sua massa
cinzenta? Grande quão seu “pensamento”

que aliás bem poderia dá-lo às traças
pro seu orgulho e meu contentamento –
qual um Kierkegaard carente de chalaças
elas adoram um péssimo argumento…

Cheinho de razão e de ateísmos
eu (um dia) a contestei com um carinho
digno dos mais sinceros Neomarxismos…

Ela se foi – com uma cara de Tom Berenger –
e aqui fiquei (tão sábio), mas sozinho
e bruto como um clone do Schwarzenegger.








 II
[A VIRGEM DOS DEVANEIOS]



 – Cansada de sofrer de desenganos
subiu no ônibus e olhou além
de um horizonte que ninguém via... ninguém...
Era assim uma rotina de vinte anos.

Pagava, se achatava e refletia:
“se é para desperdiçar meus seios – vixe! –
melhor era sofrer num Mitsubishi”.
E sentia que a vida lhe ruía.

Certo dia (porém) os olhos de Ana
se viram em outros olhos – xerocados –
dois sóis em meio a tantos desgraçados.  

Mas ele achou-a “feia e doidivanas”.
Ana (que não o poupou de um adjetivo)
morreu de suspirar num coletivo.







 III

[FANTASIA PÓS-CARNAVALESCA
SOBRE UM TEMA DE CARLOS PENA FILHO]



 Liliane – a desolada – se rendia
aos apelos cruéis de um Ballentine’s
e como um velho conselheiro Aires
tentou viver uma vida em que não cria.

Mas viu em suas reflexões alcoólicas
que “a dor de uma paixão ninguém entende”
e o coração a si não se compreende
em suas resignações tão melancólicas.

Como quem opina no programa da Hebe
Conselhos sua mãe ofereceu-lhe
Pois: – “Deus do Céu não vela por quem bebe”!

Livre de culpas – toda serelepe –
Liliane (a renovada) obedeceu-lhe...
e foi fumar maconha em Arembepe.




***


UMA VIAGEM

(ou O CRÂNIO DOS PEIXES)

a Agostinho Ribeiro do Nascimento e família
e a todos os Ipiraenses de vão-e-vem como eles...

Un souvenir heureux est peut-être sur
terre plus vrai que le bonheur
A. MUSSET






I



– A rodoviária é sempre a mesma
aglutinação de almas a se moverem
cada uma com seu vazio diário ao passo
das coisas perpétuas – são os mesmos tipos
diferentes dos mesmos rostos multiplicados tão longínquos e sombrios à incansável
jornada de cada dia por dentro daquela
mesma matéria a cada minuto mais
exposta a cada passo mais restrita e em
cada palavra não dita uma perdida
urgência de viver...

É aqui que meus instantes declaram
sua existência descontínua e fundamental.
É na poltrona do ônibus que uma explosão
de vida me elabora por trás dos
seres que fogem. É por sua janela
que os elementos se resultam
no fantasma incorruptível de meu destino
na ponderabilidade incorrigível
do meu Espírito ou na lembrança
distante de minhas melancolias e de todas
as hostilidades
– da identidade anterior de
todos os meus pensamentos.

Daqui parto como a última e nenhuma
vez a partir de novo. Daqui parto:
circunspecto e impreciso – mas principalmente
forasteiro: peregrino da minha
e de tantas almas
como todas, talvez?!
Daqui parto sobre a Asa fugaz
das rodas e da Estrada ao lado de toda
tristeza profunda e ilegível com o asfalto
(como a me indicar uma metáfora) ou
com o meu companheiro de poltrona
a me mostrar em seu imperceptível perfil
o espelho de meus dias e de meus sentidos:
a denúncia de minha solidão
(e da sua) à face fria da evasão
de todos os meus sonhos.

Aos poucos Feira de Sant’Anna some ao longe:
naufragada nas rochas no
calor e nas mãos penosas
do horizonte infinito. Sua imensidão e sua
vulnerabilidade dão lugar à Caatinga
consciente de sua Beleza e de sua Fúria
(faminta de tantas raízes e tantas líricas
afogada sob a imensidão fria e perene
dos Céus... sobrevivente sob

a tardia evolução das pedras e
dos homens que como elas
edificam seus dias de tempo
e pó): revigorada de um erotismo
verde a Caatinga toca os meus
olhos de unânime perfume e
consistência...


(Comumente a Caatinga tem a Morte
por amuleto mas por esses tempos a vida
é sua máscara. Concretamente mudo
o verde que deságua por essas terras
cobre-as de muitas esperanças fugitivas.
Feliz e forte em si mesmo
– e nos instantes que se desprendem
a cada um de seus passos –
o sertanejo sorri alegre em vê-la
como por uma primeira vez
repleta de saudades
com a feminilidade das terras que se
casam com o mar e entre
ele e sua filosófica longitude declamam
sua matéria de eternidade afastada
e vida azul sempre presente
e oculta...)

Anguera surge pequenina e surpreendente
debruçada na cama dos morros
repousada de amor e desencantos
ora tardios ora secretos
e inanimados.
Sobre o tapete duro do prazer das
serras vê-se Anguera descrente e viva a
cada instante de amor, aproxima-nos
de si enquanto a estrada
a consome em memória.
Enquanto a lembrança e o tédio
a semeiam em eclipse e vento
– em santificação letal e falsa
para o novo reencontro dos
antigos esquecimentos
que sempre voltam.

O carro as pessoas e as esperanças
cortam a carne da estrada (nova e velha)
como ao vencedor a Morte zomba.
Miúdas certezas miúdos beijos
miúdos olhares sob a claridade doce
das serras se envolvem no ônibus
enquanto indiferente durmo para
tudo isso e busco um tempo
explodido entre os morros que anunciam
a mão esquelética da Transformação:
a síntese precária da natureza
sob a criação que se extingue
de minuto a minuto
de vivência em vivência de cada segundo
de eternidade a eternidade
em cada herança de sono
de outras e de outras
vidas e Vidas...

(Serra Preta existe apenas no mistério
e nas migalhas do imaginário:
nunca a vi... sempre por trás
da paralisia encoberta da montanha
de verde e pensamento.
Sempre decifrada no nada
e naquilo que em mim sobrou de absoluto e bêbado
e que só sei que as tenho só por esquecer.
Serra Preta é uma música da
qual não me lembro de tê-la lembrado
alguma vez. Serra Preta é um
nome uma rapsódia uma epifania.
Uma narrativa sem fatos que
reconto a mim enquanto
Eu os outros e o carro
sangramos a estrada...)

As paradas que faz o carro
são mais que uma necessidade:
são um enterro (uma morte onde se caminha) –
são uma existência que vai depressa
sempre correndo – a si mesma se levando.
Cada ponto de ônibus é um falecimento.
Cada viajante que sobre o âmago
do ônibus despoja sua provisória vida
é mais um morto na descida que leva longe:
longe demais do Viver
longe demais das cores da Caatinga que
com o curto tempo desbotar-se-ão
com a Alma e seus homens
de cor e pedra e alma e sonhos...

Bravo vem manso e cansado...
quase imperceptível ao longe de seu entroncamento
que não leva a parte alguma de todos nós.
O Bravo ao contrário de Serra Preta
não existe no mistério mas é um
mistério uma charada que se desvenda
a cada dia enquanto a morte se nos chega:
o Bravo é uma voz que até nós sobe
de tão simples – de tão mística – de tão
pressentida no vazio dos
ônibus sempre ocos.

(Os rios por essas épocas do ano
são como veias para os ossos da terra
para os esqueletos das rochas e para o espírito dos gados que se pensam –
quase sempre sem sangue
quase sempre esquálidos (abandonados)
de soluções e de vastos mundos
por onde passam.
Os rios quase nada nos dizem de velharias
de retirantes ou dos corações perdidos
de pó e espinhos e gente e santos e mil diabos.
Os rios como fios elétricos da terra
inumana e indesejada sempre nos falam
do fazer falso do Novo
do divino por fora de todo perdido...
Os rios mesmo na Caatinga
são sempre novos e infantis – adolescentes
talvez?! – mais imaturos como
nunca e mais jovens que a Eternidade
que ao mesmo tempo é velha
e transcende o tempo e as coisas
e suas almas e seus
vestígios...)

A serra ao longe que há pouco era uma
menina observa-me do alto
de sua testa de árvores e pedras como um Adamastor adoecido
– Pau Ferro fica logo atrás desse gigante
ingênuo: com seu perfume de lembrança
e sua metálica audição de granitos bambus
bananas e macambiras e sua imensa e inexplorada
longitude de poucos metros
com seu colossal abandono de
pequenino e seus abismos de pai ao lado
da materna dor do Nordeste
escondida no ventre dos sertanejos
que são um único fraternal e
fraco corpo. Pau Ferro tem a cor do cheiro
das plantas sertanejas e a desilusão
de seus habitantes e de um tempo
que é para sempre ontem...
O amanhecer voa claro em Pau Ferro
e o colorido
do calor do dia sopra mais fundo em
minhas vistas. A ânsia de ultrapassar
os instantes dependurados sobre Pau Ferro
perdem-se em mim como estes últimos
versos com que chego ao quase
fim de minha jornada –
começada dia a dia entre o
sempre e derradeiro fim...















II






– Eu sinto Ipirá como quem chega de mim
ao chegar em seu abdômen de sangue
e mármore  aliás
para que valeria tanto chão e pressa
se cada hora
não fosse perfeita
sobresse destino tão
presumível
e impossível de
se viver.
Do que valeria
tanto se cada coisa
sempre-mesma
se apresentasse a mim
indefinível?. Eu
sinto Ipirá ao vê-la e ao pisar-lhe
o chão como peregrino que sou e de mim mesmo.
Eu a sinto como quem sofre e como quem come.
Sinto-a em cada um de seus ares com
fincadas flechas nas aproximações
das crianças que aprenderam
a não ter esperanças e
algum dia
testemunharão
o grave frio das fúrias
que a alma nos entrega e
pede de volta na
mesma sã e
incorruptível
moeda.
Estou em Ipirá:
depositado e abreviado
de dias e compromissos
menos imediatos.
Estou em seu olho que
me parece vir...
estou em
sua velhice
e em sua vontade...
Estou no sono
de Ipirá
quando aqui
sempre chego e
Ipirá me espera (Ipirá
me espera em si
por dentro de mim e em
nossa sabedoria desmemoriada
por parecermos demais... – Ipirá me saudara...) –
o Tempo muda rápido, numa vagareza mais do
que comum do tempo e seus artífices e
o vigor do encontro é mais demorado
e um quanto que mais enérgico.
Pois aqui já dizia alguém da terra
que sangue suor e todas as
lágrimas dos dias
se misturam nesse chão
de barro e vida.
Os dias por aqui
apesar do sangue e da
transpiração dos dias e dos
muitos sentimentos
apesar dos homens e dos
porcos das máquinas das alfaces
dos fumos de suas mulheres
e de seus falimentos
estão em minha tranquilidade...
A feira é um gesto um
acordo entre
seres entrecruzados
um aperto de mãos abreviado
de vida e de longas descidas
pelo rio da morte
e da insatisfação
– a feira (tão famosa e tão não
lembrada por tantos)
deposita sua voz
no lombo surrado dos
carros de bois
e dos homens sobre os carros
e sobre os próprios homens
permanecidos parados
pedindo perdão aos seus
primeiros pecados
e palavras
parecidos
profundos
profanados parte por parte – repartidos.
Ipirá talvez seja
um rio de tão idoso
ou a própria morte
de tão forte e de tão
inegavelmente precisa.
Ipirá cabe em três palmos e meios
de minhas mãos
vista do Morro Alto,
e Eu caibo em sua
subjetividade
como quem se imagina
em matéria leve e
incorruptivelmente
bruta.
Mas nada é maior em Ipirá
que a sua desilusão
de mais de mil cabeças:
cabeças de gentes
de porcos
de bois
de galinhas
de comércio de pasto e leite...
Calcada no infinito
profundo e desnecessário
dos morros e das fazendas
Ipirá se move ao passo
dos jumentos que carregam
o mel da Caboronga
(a velocidade dos jumentos
é uma velocidade imprecisa –
é a velocidade da esperança e do
medo de toda esperança.)...
Ipirá é uma migalha orgulhosa
de Universo
ante à incompreensão
suja e santa
do próprio Universo...
Despida de Céus
sua honradez desnecessária
germina-se dos verdes pastos
dos morros que são seu travesseiro
e de seus capins (de um verde imenso
de vida e anulação) –
tapete efêmero e irrecuperável
de suas obras cristalizadas –
caem seus animais de ferro
e rocha e carne e espiritualidade
inumanas:
breves brados surdos das paisagens
inconclusas de sua memória
e de seus braços atados
à suspensa pena
de intervenção definitiva
da concepção do tempo
como agente consciente da dissolução
das coisas...
Eu respiro Ipirá pelas narinas da noite
e pelos pulmões
das madrugadas mais próximas e breves...
Sinto todo o seu perfume de profundidade e angústia
de sensações de medo intensificados de suas
banidas lembranças e de seus momentos
maiores de dramática intensidade
de seu determinismo de seu
gozo profundo acompanhado
de dor tão forte e religiosa
de sua reprodução e morte...
Ipirá aspira à vida em cada um
de seus paralelepípedos
em um a um de seus becos
uma por uma de suas praças
e ruas quase infinitas
e que são nervos de seu cérebro
esquecido e lúcido
de loucura concreta e adequada.
Ipirá respira a vida
em sua linguagem
mística de
sertanejos calados
e animados de vazio e
doçura.
Ipirá deseja
e sopra vida
e Vida
no aroma
incorrupto
de seus mendigos
roceiros
senhoras
e putas.
Ipirá é um viver
reescrito em palavra e
dor: numerosa dor
inflexível e
admirável dor:
dor de gentes
dor de gentes maiores
que outras gentes
dor de gentes
convertidas
em bois e carros
dor de gente transformada
e transfigurada em porcos
dor de gente e de morros
dor de gente e lixo
e gente de lixo e dor
dor de gente convertida em outros
dor dos outros
dor de nós
dor de Ipirá e suas células
dor infinita e
inumerável dor de
mim que estou em sua glória
e em sua fraqueza
que estou em seu sexo
e em sua conversão
em seus olhos
em sua boca
e em suas
palavras...
em sua mudez
em seu horror...
em sua devoção.
Ipirá é para mim
esta amizade corrupta de sonhos
como a juventude das pessoas e dos amanheceres
de Ipirá retiro quase todos os dias os barros
de minhas línguas e as sementes
das pernas que se apressam
de tanto chegar a mim
e em seu surpreendente
avivamento –
e esta vontade de amar a vida de novo e
pelo avesso encontrei em Ipirá
e em cada mulher de sua terra.
Ipirá é um sonho:
dormindo sempre na memória
dos homens munidos de olhos e
facas, abraçados aos rios e à nascente
da ilegível bica da Caboronga
e abaixo da superfície calma
do entardecer dos dias
que são mais bonitos sobre as planícies
quase imaginárias
onde a Estrada e Baixa Grande
são uma ideia
coberta dos concretos abstracionismos
da carne virginal
dos delírios da feira
na falsificação do meio-dia.
Deste sonho que é Ipirá
acordo sempre para dormir
de novo em seu leito de chagas
e frutas frias e calmas.
Ipirá se encontra dentro de muitas outras coisas
como muitas outras encontram-se dentro
d’outras muitas outras
coisas e d’outras...
A música que
Ipirá respira
é como o doce líquido
da paz do sangue das carroças
e dos carros alimentados
de gentes e de imensos
e vulgares vazios de
gente vazia e líquida
como sangue e música...
As horas de Ipirá
são como as voluptuosas horas
dos presentes velozes a
se retardarem de
relógios parados de tempo
de tempo parado de movimentos
fluídos e líquidos
como relógios
como pássaros
(que não mais existem)
com seus carcarás (a não mais existirem)
com seus mamíferos (que ainda existem) como
minha vida (que não se quer e existe) como
Eu...
Eu impuro e branco como as chuvas
que alimentam a imprestável
jovialidade da vida que
beija a Caatinga
como uma chama ou
como o brilho do gelo e do vento
que me transporta –
e transporta também a Ipirá –
para a fome
da felicidade temporária da Caatinga
quando verde...
para o afogar-se
invisível
de todo este lençol de
Beleza agora morta
e desejada o cobertor da morte
como vida e castigo
de tantas vidas
a se compreenderem tanto...
Ipirá trava em si a violenta e invisível
luta de elementos
e de origens construídas de
absoluta violência e cuidado no
exíguo espaço da
cidade que dorme para si
e para seus filhos
vestidos de sombra e noite:
noite orgânica. Noite mínima em
mínimo homem... homem
mínimo em mínima
noite morta
homens mínimos e inteiros
singelos momentos de
existência e morte
homens que ali
apreendem ritmos populares
das festas e dos deuses
que erram em amar sua Criação –
na clandestinidade imposta
dos sonhos das crianças
que cruzam os órgãos
expostos e verdes
e claros daquelas roças
onde a vida pousa lentamente
na inocência abundante
dos pés daquelas crianças
e nos seus sonhos
igualmente infantis
e desnecessários
a tantas
coisas doadas
pelo bruto branco dos mundos.
Ipirá está povoada da
dura realidade mística
do aroma de suas paisagens
que também são homens:
místicos e perfumados
como a paisagem
a paisagem e sua sensualidade
branda e incansável
com seus pássaros e mamíferos
de paisagem e espessa fantasia...
A paisagem
e seu atributo essencial de poesia
e das cores de Ipirá
que me olham
como a uma impressão de ponte
no processo mesmo da visão das almas
no prefácio fictício
passo a passo seguido  
(Ler soir clair nous conduit au jardin taciturne...
e a Morte rasga o Silêncio
dessas flores e febres que
são para as almas como o sol
imortalizado no fechar dos olhos
destas tardes de dor e azul
inegavelmente profundo...
E o Sol que dorme
é o temperamento daquela
alma perdida em Ipirá
decifrada
no Céu e no incunábulo obscuro
de sua terra
de sua sombra
de seu pó...
de sua lembrança
encarcerada no
silêncio dissonante da memória
interligada com o ocioso Sublime)
pela minha vida noturna e
fascinada
dans mon
coeur ébloui

e mais um verso de
Paul Morin me
aborda e me toma...
Ah! Ipirá
afogada de tanto Infinito
centrada nos vales da razão geológica
e inorgânica da Caatinga imortalizada de miasmas
Ipirá
de meu amigo Agostinho
de seu pai
de sua avó
tão distante (e de seu
Esquecimento)
 – Ipirá que
fenece em seu duro
e generoso
parto...
Ah, Ipirá de
meus amores
mitológicos
e inegáveis.
Ipirá reproduzida
em meus ossos
e em meu
eterno presente.
Ipirá de tantos
olhos
Ipirá
de tantas
almas.
Ipirá de
tantos e tantos
sonhos...
Ipirá
sem
nome...










III






– (O mar é a antítese das terras onde
habita o Sertanejo cheio de cor
– cor eterna é claro –
repleta de vida
cheio do mover insustentável e indivisível
dos peixes que assistem em seu ventre
feminino e hodierno como
todos os passados pressentidos
ou como todos os futuros
que se esqueceram...
Como os peixes que no mar habitam
– também como os peixes que nos rios vivem –
cada homem do Sertão corre atrás da vida
fabricada ou vendida
trazendo a morte e o esquecimento
de muitos outros por carga ou
por sorte...

A Caatinga que esquece
os passos de cada homem
produzido dela
ao contrário dos rios
e do mar
e da memória
que não consomem
os peixes
destrói e reconstrói
à sua maneira
cada
homem e cada vida
martelada
e revigorada no
homem:

Peixes:
como caudas e barbatanas
de homens –
Homens:
como as
escamas
e o crânio dos peixes...)














Ipirá – Feira de Santana, dezembro de 2001.










JESSIER QUIRINO (1954)

É poeta, compositor e interprete brasileiro, que faz uso de um linguajar nordestino utilizado como um recurso cômico além de expressar a rica cultura popular existente no sertão nordestino. Nasceu em Campina Grande, no estado da Paraíba, no dia 30 de abril de 1954. Foi aluno do Instituto Domingos Sávio e do Colégio Pio XI. Com 11 anos ingressou na Escola de Artes. Após concluir o ensino secundário mudou-se para a cidade do Recife, onde estudou no Colégio Esuda. Com 16 anos aprendeu sozinho a tocar violão. Em 1998 lançou seu primeiro livro de poesias Paisagem do Interior e desde então virou artista de palco, fazendo apresentações em teatros, universidades, clubes, grandes convenções, festivais de repentistas etc. Seu trabalho com a rima e a métrica tem sido estudado nas salas de aula. Por duas vezes sua obra foi tema do vestibular da Universidade Católica de Pernambuco. Seus livros infantis: Chapéu Mau e Lobinho Vermelho e Miudinha foram adotados no programa Educação de Jovens e Adultos do MEC, para o Estado de Pernambuco. A poesia, os “causos” do interior, os cordéis e as músicas de Jessier Quirino já foram publicadas em livros e CDs. Além de Paisagem do Interior (1998), publicou: Agruras da Lata D’água (1998), os CDs Paisagem do Interior I (1999), Paisagem do Interior II (1999), Prosa Morena (livro e CD, 2001), Política de Pé de Muro (2002), Bandeira Nordestina (livro e CD, 2006), Berro Novo (livro e CD, 2010), Papel de Bodega (livro e CD, 2013), Vizinhos de Grito (DVD – gravado ao vivo no Teatro da Boa Vista, no Recife, 2013).













ARGUMENTO DUM VELHO SERTANEJO


Mode as modas de hoje em dia
Mode os modos de falar
Mode os amuo dos besta
Mode os presepe de lá
Mode estrupiço dos tempos
Mode eunão me amedronhar
Mode os pi-bite das rua
Mode as mutreta que há
Mode as falta de um bom-dia
Um boa noite, um olá
Mode assalto, mode tiro
Mode as fumaça do ar
Mode eu não ter desgosto
Ou mesmo me ressentir
Não se anime mode eu ir
Que eu não deixo esse lugar.


***


CAMINHÃO DE MUDANÇA

Vai pela estrada um caminhão repleto de mudança
Levando a herança de herdeiros de poucos herdados:

Os engradados de uma cama finalmente em pé
Arca e Noé prisioneiros desse esfaqueado
Encaixotados os tecidos, mimos e quebráveis
E os incontáveis cacarecos soltos remexidos
Dois falecidos num retraio olham pra paisagem
Guardando imagens e lembranças dos seus tempos idos.

Um velho espelho já trincado mostra o azul do céu
E o mundaréu ensolarado se faz de carona
Uma meia-lona sobreposta com o melhor arrojo
Se faz de estojo pra relíquia da velha sanfona
Uma poltrona escancarada de pernas pra cima
Fazendo esgrima com cadeiras, bancas e tramelas
De sentinela dois pilões de bojo carcomido
E um retorcido pé de bucha de flor amarela.

Em dois colchões almofadados dorme a bicicleta
E duas setas de uma caixa mostram dois achados:

Um emoldurado de retraio com um Jesus sereno
E o último aceno de saudade de um cortinado.
Desbandeirado segue o carro rumo a seu destino
Um peregrino pitombado de grande esperança
Vai, na boleia, um passageiro carregando sonhos
Vai, na traseira, dez carradas de velhas lembranças.


***



Endereço de Matuto

Daqui até lá em casa? No Sítio Caga-Chapéu?
Dá um bocado de légua
Mas não é leguinha besta, nem légua de beiço não.
É légua macha, abafada
Dessas légua macriada, medida a rabo de cão.

Você saindo daqui, nem querendo você erra
No oitáo do cemitério pega a viela de terra
Desce em Toim Farinheiro
Passa a água brancacenta de Zefinha Lavadeira
Daí pra frente é estrada...

Depois da reta pegada
Avista o esbarro d'água do pai de Mane Maior
Avista o tamarineiro
Morado e sombreado de Seu Zé Vacinador
Quando chega nas quebrada do Raso do
Macaíba
Pega um mato embamburrado
Que o cabra morre e não chega
No Lajedo da Formiga.

Avistando um pé de pau com parecença de ipê
Aí o cumpade vê uma pista arreganhada
Prontinha se oferecendo pró cabra que aparecer,

Mas aí você não quera...
Diz: Essa não apriceio!!!
Pega a trilha carroçave
Com duas baixa dos lado e cabeleira no meio.

Bem dizer já tamo dentro da Avenida do Capim
Toca em riba da babugem coberta de pisadura
E tome rédea esticada do começo até o fim.

É estrada festejada por cerca de todo tipo:
É cerca de enchimento, de vara e de pau-a-pique
De lance, de avelós, de pedra, cama-no-chão
Trançada e pedra dobrada, aramada e travessão. |

E abre e fecha porteira
Porteira de pau-em-pé, de mourâo, de pau corrido
De colchete e zigue-zague
E o cabra ali no mondé!...

Se chegar numa porteira lambuzada de azul
Aí o cumpade errou...
Volte dez braça pra trás e quebre o braço direito
Onde começa Amargosa, as terra do meu avô.

Quando der numa caieira de pretura acarvonada
Pega a subida abusada do Serrote do Mói-Mói
É trecho pau-com-formiga
É ladeira enladeirada
Se o cabra sobe fumando
Cai cinza dentro do zói.

Bem dizer não chega em riba
Pega a gangorra descendo.

Da ribanceira pra baixo
É Sítio Caga-Chapéu
Avistando o mundaréu
Dali você tá me vendo.

Vê gado e capim-mimoso
Em estado de baixio
Em estado de balaio
Laranja, manga e limão
Pé de jaca jaquejando
E caju de vez em quando
Cajuindo pelo chão.

NÃo dá um pulo de grilo
Pra chegar no meu terreiro
É rudiar o açude
Que o cabôco morre em cima
O cabra logo se anima
Na sombra do juazeiro.

É uma casinha alpendrada
Com cinco bico de luz
O cachorro é Bero-Waite
Mas abana logo o rabo
Pra Nego-Véi e Cuscuz.


KARINA RABINOVITZ (1977 - )

É baiana, de Salvador, graduou-se em Comunicação Social (Jornalismo) na Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2001. É poeta, produtora de discos, vídeos e teatro. É autora de De tardinha meio azul (2005); Livro quase impossível (2010), entre outros; além de participar de várias antologias e ter seus poemas traduzidos para o inglês, o francês, entre outras...










chá de jasmim



depois do chá de jasmim
que bebi esta manhã,
não é que eles desembestaram a brotar
dentro de mim?


***


 
descaso

o destino que me valha!
você deixou seu fósforo aceso
dentro de minha vida de palha.


***



dos muros

passeio rua afora
estão todos a construir,
tijolo por tijolo,
suor por suor,
novos muros.

e quando deitam,
à noite a dormir,
- todos -
não há nada
que sonhem mais:
derrubar muros.