segunda-feira, 8 de julho de 2013

VINÍCIUS DE MORAES: 100 ANOS!!!




 


VINICIUS DE MORAES:
POETA DE PAIXÃO E DESESPERO...

( por silvério duque )





Gramaticalmente, eu aprendi que diminutivos servem para, basicamente, duas coisas: identificar algo de pequeno porte e demonstrar, por extensão, carinho que temos por certas coisas.  Em ambos os casos, parece-me que o diminutivo acaba em equívoco em se tratando da pessoa e da poesia de Vinícius de Moraes.

A verdade, é que o poeta carioca passou a vida inteira a carregar tal alcunha: “poetinha”... quase como a dizer que é alguém de quem se gosta, mas sem grandes seriedades. Desta maneira, a grande poesia de nosso Modernismo caberia apenas à tríade formada pelo existencialismo prosaico de Carlos Drummond, pelo lirismo neobarroquista de Bandeira e pelos mineralizantes e politizados versos de João Cabral de Melo Neto. Na verdade, acontecera com Vinícius o mesmo que aconteceria com toda uma geração a que hoje chamamos de Pré-modernista que, não tenho como enquadrar Vinícius e seus poemas dentro daquilo que consideravam o verdadeiro modernismo, o cânone acadêmico, praticamente, jogou para segundo plano a sua literatura, construída a partir de uma trajetória singularíssima, que vai do uso das formas e das influências mais tradicionais da poesia à carreira de compositor popular. A isso também se aplique fenômenos como em Cecília Meireles, Jorge de Lima, Mário Quintana e os mais recentes casos: Bruno Tolentino e Alberto da Cunha Melo.    

No entanto, Vinicius de Moraes foi um poeta que sempre mesclou a intensidade das paixões com seus conflitos interiores – e isso serve também para o homem Vinicius de Moraes. Como os antigos românticos que sempre admirou, Vinicius poetizou sua própria vida interior; era o poeta que refletia em seus versos sua vida pessoal atormentada e sujeita a freqüentes períodos de depressão e tristeza. E tem mais: Vinicius de Moraes, à maneira de poetas como Drummond e Cabral se dá ao luxo de possuir muitas fases distintas desde seus primeiro livro O caminho para a distância (1933) aos sonetos que lhe deram fama, prestígio e, contraditoriamente, desrespeito por parte dos mais “vanguardizados”. Essas fases trazem influências igualmente diversas e acentuam traços que vão do catolicismo atormentado à poesia leve e sensual de poemas como A balada das meninas de bicicleta. Podemos ver em Vinícius tanto a influência de Arthur Rimbaud, na primeira fase de extração simbolista, como a de Camões – pasmem – na fase dita “mais leve”, onde, como dirá Ferreira Gullar, Vinícius de Moraes se converte em Vinicius de Moraes.

Uma coisa é facto em todas essas fases: Vinícius sempre se encontrou na antinomia entre a paixão e o desespero, entre o sexo e a morte, a culpa e o prazer; e mesmo entre a vida de poeta e compositor (esta segunda muito confundida com sua obra poética; outro equívoco muito comum e imperdoável com relação à obra de Vinicius de Moraes). Sem tal contradição, torna-se impossível compreender a dimensão que sua obra terá sobre toda a história de nossa literatura, muito menos a profundidade da paixão pela qual o poeta é conhecido e reconhecido até hoje. Um bom exemplo disto está naquele que se tornará seu poema mais célebre, o Soneto de fidelidade, onde a paixão descrita em versos como:

De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento...

mescla-se com o desespero apresentado em seu primeiro terceto:
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama...

Vinicius, resumidamente, foi isso: um poeta de paixão e desespero onde a vida é, ao mesmo tempo, apreciação e sucessão de decepções. Para quem escuta os versos e os acordes de uma Garota de Ipanema ou lê e declama um poema como Feijoada à minha moda, não imaginam Vinicius de Moraes como um homem a quem a vida e o mundo incomodavam tanto ao ponto de ambos viverem em completo descompasso. Mas tudo em sua poesia, e para se perceber isso basta-nos um olhar um pouquinho mais atento, encaminhar-se-á e se findará nesta bipolaridade tão barroca quão psicológica. A influência de Arthur Rimbaud em versos como os presentes em Une saison en enfer lhe deram os primeiros empurrões para essa situação e seus primeiros versos só confirmam isso. Daí em diante, a paixão e o desespero, a sensualidade e a tristeza... serão dicotomias que o acompanharão para o resto de sua vida de homem e poeta: ao poeta, tão sozinho/tudo pouco se lhe importa/e por muito delicado/faz um carinho na morte (...)//A morte sorri feliz/como quem canta vitória/ao ver o poeta tão triste/tão fraco tão provisório... escreveria ele em Romance da amada e da morte.
Os nove casamentos aos quais se entregou, é outra prova de que a paixão e o desespero foram além de mera caracterização e estilismo poético: escravo da paixão, Vinicius de Moraes amava a condição de se apaixonar e a poesia ganhou muitíssimo com isso... o mesmo, infelizmente, eu não possa dizer de suas esposas. Mesmo nas relações mais furtivas, como a que viveu com a poetisa Hilda Hilst, a mínima idéia de tristeza era-lhe insuportável, até o amor acabar e a ela o poeta entregar-se profundamente. E assim, o lado obscuro da poesia de Vinicius de Moraes sempre aparecia, seja em circunstâncias desculpáveis, como na morte de seu pai, que lhe rendeu o belíssimo Elegia na morte de Clodoaldo Pereira da Silva Moraes: 

A morte chegou pelo interurbano em longas espirais metálicas.
Era de madrugada. Ouvi a voz de minha mãe, viúva.
De repente não tinha pai.
No escuro de minha casa em Los Angeles procurei recompor tua lembrança
Depois de tanta ausência. Fragmentos da infância
Boiaram do mar de minhas lágrimas. Vi-me eu menino
Correndo ao teu encontro. Na ilha noturna
Tinham-se apenas acendido os lampiões a gás, e a clarineta
De Augusto geralmente procrastinava a tarde.
Era belo esperar-te, cidadão. O bondinho
Rangia nos trilhos a muitas praias de distância
Dizíamos: "E-vem meu pai!" Quando a curva
Se acendia de luzes semoventes, ah, corríamos
Corríamos ao teu encontro. A grande coisa era chegar antes
Mas ser marraio em teus braços, sentir por último
Os doces espinhos da tua barba.
Trazias de então uma expressão indizível de fidelidade e paciência
Teu rosto tinha os sulcos fundamentais da doçura
De quem se deixou ser. Teus ombros possantes
Se curvavam como ao peso da enorme poesia
Que não realizaste. O barbante cortava teus dedos
Pesados de mil embrulhos: carne, pão, utensílios
Para o cotidiano (e freqüentemente o binóculo
Que vivias comprando e com que te deixavas horas inteiras
Mirando o mar). Dize-me, meu pai
Que viste tantos anos através do teu óculo-de-alcance
Que nunca revelaste a ninguém?
Vencias o percurso entre a amendoeira e a casa como o atleta exausto no último lance da maratona.
Te grimpávamos. Eras penca de filho. Jamais
Uma palavra dura, um rosnar paterno. Entravas a casa humilde
A um gesto do mar. A noite se fechava
Sobre o grupo familial como uma grande porta espessa.
(...)

ou no encantador, sensual e triste Soneto de luz e treva, dedicado à baiana Gesse Gessy, sua sétima esposa; um exemplo magnífico de como o côncavo e o convexo de um mesmo poeta pode aparecer grandiosamente em uma único poema:

Ela tem uma graça de pantera
no andar bem comportado de menina
no molejo em que vem sempre se espera
que de repente ela lhe salte em cima

Mas súbito renega a bela e a fera
prende o cabelo, vai para a cozinha
e de um ovo estrelado na panela
ela com clara e gema faz o dia

Ela é de Capricórnio, eu sou de Libra
eu sou o Oxalá velho, ela é Inhansã
a mim me enerva o ardor com que ela vibra

E que a motiva desde de manhã.
-- Como é que pode, digo-me com espanto
a luz e a treva se quererem tanto...



Vinicius de Moraes foi um reabilitador do espírito romântico de entrega total ao sentimento e todo o desespero que isso pode trazer a um homem, seja ele poeta ou não, numa época em que isso consistia em um verdadeiro pecado. E mais, também foi um reabilitador do soneto, uma forma tão desprezada pelos modernistas de 1922 e tão rebuscado e retalhado pelos poetas da geração de 30, mas que ganhou na simplicidade e verdade expostas por Vinicius um lugar ao sol em nossa literatura do qual não lograva desde a Belle Époque e seus parnasianos.

No ano em que nos lembramos do centenário de sua morte, mas que é também ano de Copa das Confederações no Brasil, talvez o próximo dia 9 de julho passe tão despercebido como qualquer coisa de real grandeza pode passar despercebida em um país em que se gastou mais em um estádio de futebol do que em educação em séculos. Porém, àqueles poucos que sabem reconhecer a importância de alguém como Vinicius de Moraes, só resta relembrar os versos de seu enigmático Poema de Natal e dizer: Ave, poeta! Poetinha, camarada... :


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.









Feira de Santana, 09 de junho de 2013...







Soneto do amor total


Amo-te tanto, meu amor... não cante
O humano coração com mais verdade...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade

Amo-te afim, de um calmo amor prestante,
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente,
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim muito e amiúde,
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude. 


***




A volta da mulher morena
 

Meus amigos, meus irmãos, cegai os olhos da mulher morena
Que os olhos da mulher morena estão me envolvendo
E estão me despertando de noite.
Meus amigos, meus irmãos, cortai os lábios da mulher morena
Eles são maduros e úmidos e inquietos
E sabem tirar a volúpia de todos os frios.
Meus amigos, meus irmãos, e vós que amais a poesia da minha alma
Cortai os peitos da mulher morena
Que os peitos da mulher morena sufocam o meu sono
E trazem cores tristes para os meus olhos.
Jovem camponesa que me namoras quando eu passo nas tardes
Traze-me para o contato casto de tuas vestes
Salva-me dos braços da mulher morena
Eles são lassos, ficam estendidos imóveis ao longo de mim
São como raízes recendendo resina fresca
São como dois silêncios que me paralisam.
Aventureira do Rio da Vida, compra o meu corpo da mulher morena
Livra-me do seu ventre como a campina matinal
Livra-me do seu dorso como a água escorrendo fria.
Branca avozinha dos caminhos, reza para ir embora a mulher morena
Reza para murcharem as pernas da mulher morena
Reza para a velhice roer dentro da mulher morena
Que a mulher morena está encurvando os meus ombros
E está trazendo tosse má para o meu peito.
Meus amigos, meus irmãos, e vós todos que guardais ainda meus [últimos cantos
Dai morte cruel à mulher morena!
 

***


Ausência
 

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces.
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada.
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

 






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