terça-feira, 19 de agosto de 2014

SANTOS SOUZA (1919-2014)


José dos Santos Souza, nasceu em Riachuelo, Sergipe. Aos 13 anos, o menino Santo Souza já falava de amor em seus poemas. José Santo Souza um dos maiores poetas vivos do país, viveu em sua cidade natal até os 17 anos trabalhando em farmácia, e em Aracaju, ele continuou trabalhando no ramo onde aprendeu a manipular medicamentos com a mesma maestria que o conservou na função por 26 anos. Somente em 1938 ele retornou à poesia. Por puro desencanto, Santo Souza parou de escrever e foi se dedicar a música, aliás, com todo autodidatismo que lhe é peculiar. Estudou música aos 15 anos como se estivesse estudando aritmética, talvez por isso aprendeu a tocar em três meses, inclusive compondo para clarineta algumas valsas para a namorada. Autor de vários livros, todos os poemas, sendo o primeiro livro publicado Cidade Subterrânea (1953) e assim suas obras vieram sucessivamente como: Caderno de Elegias (1954); Relíquias (1955); Ode Órfica (1956); Pássaro de Pedra e Sono (1964); Oito Poemas Densos (1964); Concerto e Arquitetura (1974); Pentáculo do Medo (1980); A Ode e o Medo (1988); Obra Escolhida (1989); Âncoras de Arco (1994); A Construção do Espanto (1998); Rosa de Fogo e Lágrima (2004); Réquiem para Orféu (2005); Deus Ensanguentado (2008); Crepúsculo de Esplendores (2010)...







CANTO II


Ah, ousamos reger o mar sagrado
para onde a noite inválida se afasta
com a partitura efêmera das horas!
Treme no aquário nossas mãos. O rio
torna a mover-se, envolve nossos pés,
restaura o amor na imagem fugidia
de nossos olhos ímpios e vulgares,
e um riso antigo vem doer na bpca
da sibila cruel que nos desata
o nó da liberdade que ansiamos.

Que surpresa incontida nos impele
e faz que penetremos insubmissos
nestes vales revoltos, nestas dunas,
neste vasto silêncio encarcerado
em templos e oceanos que não vemos?
Outrora aqui tecemos com paciência
lendas heróicas, lagos, e as palavras
com que reconquistamos o segredo
da noite inicial, e construímos
com a sua tessitura a eternidade.

Aqui com nossas lágrimas regamos
chão, firmamento, rios. Dissolvemos
a luz da aurora em nossas amarguras.
E, para dissipar o espesso tédio,
dilatamos o cerco do horizonte
para além das colunas demarcadas
pelo Eterno que, agora, nos contempla
e soma o nosso esforço, esta agonia
em que nos vamos iludindo a vida
com sangue, pedra, fel e poesia.

Mas onde os nossos mares? Onde as naves
que nossas mãos domavam, contornando
suas ondas e praias, suas vozes,
a sinfonia mágica das águas,
o rodízio das noites, a cantiga dos afogados, o sorriso e o choro
das crianças perdidas, navegando
nos braços das sereias, e a tristeza
de Deus, ao perceber nosso fracasso
no mar que ele nos dera e nós perdemos?

Era vasto o domínio. Nosso olhar
limitava o destino das fronteiras
por onde a morte inútil circulava.
Calculamos o tempo e o esperdiçamos.
Fomos tardos no avanço, e cedo vimos
fugir de nossas mãos o leme, e a rota
se perdeu. Nosso canto, diluído
nas águas, já não rege o itinerário
desta sagrada luta que engendramos:
perdido o jogo, a morte nos suplanta.

                                                                                 
 ***



BALIZA


Cravar a estrela no chão
e dizer à noite: agora,
afaste-se a escuridão
que eu vou chegando com a aurora.

E fazer brotar da terra
- da terra que tudo faz –
não a treva e o ódio da guerra,
mas a luz e o amor da paz.

Que eu vim traçar nos caminhos
(invés de dor e agonia)
a rota livre dos homens
com as tintas claras do dia.


 ***



de auroras, noites e sereias


Jogo os dados no mar, como quem joga
a sorte das estrelas ou do vento,
e fico a embaralhar as ondas, como
o lúcido hierofante que desvenda

 nas cartas o destino dos mortais.
Não sei qual é a carta-chave, mas
capto o sentido exato e a voz de quem
profere a frase mágica de tudo.

 E se há no fundo náufragos que vão
com dedos ágeis folheando páginas
de noites e de auroras impossíveis, 

 na superfície há sempre olhos profanos
de peixes e sereias, traduzindo
o jogo de meus dedos sobre o mar.




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