ESCUTA
Ocorre que há uns lapsos na história,
há uns lapsos. Então vêm, videntes,
relatar histórias conhecidas
em noites longas de calor, insônia.
Ouvimos. Pacientemente.
Sob discursos jazem outras vozes.
Necessário cantar.
Animais se aninham ao nosso ânimo,
baixam seu brado à espera da canção.
E os leões de pedra dos portões
deixam rolar os globos que os sustentam.
Falamos línguas obscenas.
Não. Endureceu-se o ouvir.
Indefinidamente?
Afrontar a rija espada dos confrontos,
permitir soluções, se o peito arfa
curvado de rajadas imprudentes.
Se não se deixa a alma nesses lances
em que transidos vagamos dementes,
como afrontar as rugas, decifrar mensagens
(não correm ventos nas paisagens mortas,
largadas ao relento)?
Necessário é amar.
Primeiro e último tormento.
***
ILHA ILUMINADA
A vida surge rara,
ressurge das fenestras,
uma explosão contida,
um girassol sedento
imóvel na moldura.
Vigiam olhos d’água —
aberto azul turquesa,
piscina de desejo
a refletir o alto.
Cá dentro, hospital,
o choro dos nascidos.
Também meu ventre abriu-se,
menino, numa rosa.
De bruços na varanda,
medito e reencontro
um corpo tumescido,
a face repartida
nos ritos da espécie
e sua garra firme
e minha solidão.
Retomo minha voz:
embargo, engasgo,
tosse, difícil
redenção.
Suor, em fio, escorre
da sede de voar.
Janela tão pequena,
qual ilha iluminada,
afronta a escuridão
dos blocos, argamassa,
em fila, ameaça.
Eu grito, de paixão.
***
DESVELANDO O TEMPO
Ocultem os outros
a palavra tempo
em poemas curtos
com tal tema, centro.
A palavra tempo
deve ser usada
tantas vezes quanto
impuser nossa alma.
A palavra tempo
descerra suas portas
de argila e de vento,
suas linhas tortas.
Escrever o tempo
permite retornos:
ligeiros transtornos,
fugaz contratempo.
Porque tempo, tempo,
tempo passa, corre;
se você não dorme,
ele pára, lento.
Importa saber
com visão preclara
o que quer dizer
o tempo, que exala.