terça-feira, 2 de setembro de 2014

EURICO ALVES BOAVENTURA (1909-1974)

 
Eurico Alves Boaventura, poeta, cronista e ensaísta, nasceu em Feira de Santana, em 21 de julho de 1909. Foi um dos principais nomes do grupo modernista baiano surgido em torno da revista Arco & Flexa e um dos maiores expoentes de uma literatura modernista ainda muito desconhecida do grande público. Colaborou em vários periódicos de Salvador e do Nordeste. Deixou muitos textos inéditos, alguns deles publicados postumamente como Fidalgos e Vaqueiros (Universidade Federal da Bahia, 1989) e Poesias (Fundação Cultural do Estado da Bahia (1991)). Sua obra singular é marcada por um verso livre incisivo e seus temas variam do urbanismo típico das primeiras gerações de modernistas do Brasil ao gosto requintado e autêntico de um regionalismo que lhe era demasiadamente peculiar. Na simplicidade dos versos de Eurico Alves Boaventura é possível perceber um dos elementos próprios da cultura de Feira de Santana - a figura do vaqueiro. Na lírica nostálgica do poeta, infância e natureza estão interligadas, quando canta as peripécias do menino sertanejo. Um dos momentos mais sublimes da história do poeta é o diálogo que trava com o poeta pernambucano Manuel Bandeira, registrado no poema Escusa, pertencente ao livro Belo Belo, de bandeira.






DÍNAMO


Ralam o ar, rodopiando em roucos ronrons rudos,
as ruivas, rúbidas rodas raivosas, rápidas, ao fogaréu ...

Negras fauces monstros de fornalhas, abocanhando as sombras,
num doido torvelinho desordenadamente bruto,
de permeio às turbinas, aos êmbolos, às válvulas e a loucura
de mil garras de fogo — as alavancas víboras —
no vai-e-vem, vem-e-volta,
subindo, descendo, afogando-se na fofa negrura do óleo chiando ...

Tatala, lá fora, ao dorso polido das chaminés,
a crespa asa rascante e do grande morcego chagado
a noite.

Correm escuros arrepios no alto céu de ferrugem,
mordendo a usina ...

Mas, a um canto, possante, brutal, estouvadamente,
entre o delírio de carótidas veias e artérias de aço,
bates, rebates, fremes, latejas, precípite,
em cólera chispando,
rudo, rouco, raivoso, rasgando a noite,
— dínamo da fábrica — meu desvairado coração pulsando!

***




BALADA DA ESPERANÇA CANTADA NA CASA GRANDE


Herdei de meu pai este solar antigo ...

Sob a sua sombra, as horas se aconchegam religiosamente, ciciando preces,

ciciando preces que eu só escuto e compreendo,
e a vida pousa nua no meu pensamento ...

É pura a hora, sem desejos inúteis, sem calor de sexo
que o sol nos dá ...

Bate, dentro do luar, a cancela, bate mansamente,
ressonância de coração que envelhece na paisagem sem rancor.
Bate ao sol, bate ao luar, nos nervos crespos do mourão de baraúna, melodia de saudade, recuando até nós ...

Não haverá outros gemidos lá fora abafando a música da minha alegria.

Quando poderei sonhar no solar herdado de meu Pai?



***



ELEGIA PARA MANUEL BANDEIRA



Estou tão longe da terra e tão perto do céu,
quando venho de subir esta serra tão alta ...

Serra de São José das ltapororocas, afogada no céu, quando a noite se despe
e crucificado no sol se o dia gargalha.
Estou no recanto da terra onde as mãos de mil virgens tecem céus de corolas para o meu acalanto.
Perdi completamente a melancolia da cidade e não tenho tristeza nos olhos
e espalho vibrações da minha força na paisagem.
Os bois escavam o chão para sentir o aroma da terra,
e é como se arranhassem um seio verde, moreno.
Manuel Bandeira, a súbida da serra é um plágio da vida.

Poeta, me dê esta mão tão magra acostumada a bater nas teclas
da desumanizada máquina fria e venha ver a vida da paisagem
onde o sol faz cócegas nos pulmões que passam
e enche a alma de gritos da madrugada.
 
Não desprezo os montes escalvados
tal o meu romântico homônimo de Guerra Junqueiro
Bebo leite aromático do candeial em flor
e sorvo a volúpia da manhã na cavalgada.
Visto os couros do vaqueiroe na corrida do cavalo sinto o chão pequeno para a galopada.
Aqui come-se carne cheia de sangue, cheirando a sol.
Que poeta nada! Sou vaqueiro.

Manuel Bandeira, todo tabaréu traz a manhã nascendo nos olhos
e sabe de um grito atemorizar o sol.

Feira de Santana! Alegria!

Alegria nas estradas,
que são convites para a vida na vaquejada,
alegria nos currais de cheiro sadio, alegria masculina das vaquejadas,
que levam para a vida e arrastam também para a morte!
Alegria de ser bruto e ter terra nas mãos selvagens!
Que lindo poema cor de mel esta alvorada!
A manhã veio deitar-se sobre o sempre verde.
Manuel Bandeira, dê um pulo a Feira de Santana e venha comer pirão de leite com carne assada de volta do curral
Venha sentir o perfume de eternidade que há nestas casas de fazenda,
nestes solares que os séculos escondem nos cabelos desnastrados das noites eternas venha ver como o céu aqui é céu de verdade
e o tabaréu como até se parece com Nosso Senhor.


Nenhum comentário:

Postar um comentário