Amigos e
seguidores,
Dos muitos poetas de nossas Letras, nenhum foi testemunha
da decadência de nossa cultura erudita nem incorporou, por assim dizer, tal
decadência como o paraibano Augusto de Carvalho Rodrigues dos Anjos.
Nascido e morto nos trinta anos que correspondem à
transição do século XIX para o século XX, Augusto dos Anjos cresceu e vivenciou
muitos decadentismos, por assim dizer; muitas mudanças radicais de pensamento e
atitudes, muitos estilos artísticos e literários. Segundo Antônio Houaiss, já a
partir de meados do século retrasado “a segurança do regime econômico e social
da burguesia principiava a sofrer seus primeiros abalos”. De certo as muitas
contradições internacionais, as inúmeras revoluções geraram problemas cuja
Primeira Guerra Mundial (1914-1918) se tornará seu ponto culminante.
No interregno deste quadro sumário, o Brasil se encontra
muito atrás, em relação à sua, por assim dizer, derivação cultural, embora a
Abolição (1888) e a Proclamação da República (1889), por mais que esta tenha
saído de um golpe de estado, renderam-lhe bons resultados na política e nos
mercados internacionais. Em meio a tudo isso, uma pequena e já decadente
intelectualidade, últimos sinais de uma cultura erudita, ainda vive e sobrevive.
Voltada muito mais para problemas filosóficos de ordem
genérica do que para aspectos técnicos e matemáticos – mais comuns à sua época
e ao mudo novo que, dali, se formava – temos aqueles que representarão –
perdoem-me, novamente, pelo jargão – os grandes “divisores de águas”
entre a cultura clássica e o verdadeiro Modernismo: Euclides da Cunha, e seu
quase militante Os Sertões e
Augusto dos Anjos que, com seu Eu,
resume toda uma imensa problemática teleológica de um ser humano diante do
mundo e da realidade e sua angustiante busca pelo saber.
No plano literário, o Brasil viveu um paradoxal
anacronismo entre as muitas escolas literárias oriundas do foco europeu –
principalmente o francês – que, mesclando-se, fundindo-se, não seguindo a
periodização do modelo e comportamento, mas todas se manifestando, como disse,
fora do tempo e, desta forma, produzindo, salvo o caso de nosso Parnasianismo,
originalidades e personalismos como é o caso do próprio Augusto dos Anjos.
Desta questão, surge um problema há muito não resolvido em relação à Escola a
qual muitos inserem o bardo paraibano, o Pré-Modernismo.
O grande mal do Modernismo paulista, e, até hoje, uma
grande desgraça para quem se alimentou dele, foi o fato de os paulistanos se
afastarem completamente de um passado que só lhes podia fazer bem. Se olharmos,
só por motivo de exemplo, para os primeiros modernistas de Portugal, veremos
que eles não aboliram, de todo, as formas fixas, mesmo o soneto – e nem
poderiam, pois, de tão enraizados estavam as língua e as tradições portuguesas
nos decassílabos camonianos que é o decassílabo a própria expressão do
pensamento e da língua; nem, muito menos, aboliriam os grandes temas que
percorrem a mentalidade humana há séculos e séculos; é por isso, e que nos
sirva de exemplo, que as Odes de
Álvaro de Campos são tão repletas de fábricas, engrenagens e automóveis velozes,
quanto de uma retórica ou de um ritmo poético tradicionalíssimos, que estes
mesmos elementos “modernos” tão contemporâneos não se fazem livres de um
Virgílio ou de um Platão, tanto que estes chegam até a dividir os versos com
aqueles; o próprio Fernando Pessoa era tão embriagado de Aristóteles quanto de
Walt Whitman...
Modernos sim, idiotas nunca; os portugueses sabiam que
negar estas coisas é negar-se a si e a tudo que se podia definir como cultura;
o menos que isso é caos puro e simples. Agora, se olharmos para o exemplo do
Brasil, ou pelo menos o exemplo paulista que, infelizmente, impera sobre os
demais, a coisa é contrária: despreza-se o passado, a tradição, a forma e mesmo
a linguagem apurada, que não tinha nada depreciosismo, em troca de quê? Em
troca de algo que não se sustenta por si mesmo por não ter onde agarrar-se. A
velha tentativa de buscar uma identidade nacional desprezando mais da metade
dos elementos que constituem esta identidade só poderia dar em nada, ou pior,
numa anomalia. Tudo isso, no entanto, se se considerarmos os paulista de 1922,
como precursores de nosso movimento modernista; e por que não consideraria?
Porque há uma geração moderna bem antes deles que, por
preguiça, incompetência de nossos críticos, ou espírito de cooperativismo
porco, ou (o mais certo) os três juntos, não se enquadra como modernista,
apenas como Pré-alguma-coisa... não conheço uma característica dita como
moderna ou como oriunda dos modernistas de São Paulo, que não tenha sido usada
por um Augusto dos Anjos, ou um Lima Barreto ou um Euclides da Cunha? Mário de
Andrade não foi melhor nem nunca o será em retratar a urbis caótica do que um Lima Barreto, nem um Oswald de Andrade
seria capaz de trazer tanta valorização ao passado, e às tradições culturais do
Brasil, mais do que foram trazidas à luz no antológico Triste fim de Policarpo Quaresma? O
que é o Manifesto Antropofágico frente
àquele horror que nos traga, nos devora e, ao mesmo tempo, nos apaixona e nos
faz admirados nos sonetos de Augusto dos Anjos – poemas como Os doentes e As cismas do destino, presentes em Eu, são mais repletos de urbanismo e de
uma linguagem inovadora do que quaisquer textos de Mário de Andrade.
Sobre Augusto dos Anjos, Ferreira Gullar, entre muitos,
aponta-nos o caráter inovador – modernista – da poesia do bardo paraibano: é
quando ela rompe com as muitas conveniências verbais e sociais da época,
levando, o Augusto dos Anjos, a uma mescla perfeita entre a beleza e o asco,
entre os momentos sublimes e toda a sujeira da vida, sem contar certo
prosaísmo, que triunfa sobre a rígida linguagem de seus sonetos... isto é ser
ou não ser modernista?
O que é o Manifesto Antropofágico diante de um Eu? Antropófagos que eu saiba foram o
Raul Bopp, a Tarsila e os índios que devoraram o Frei Sardinha. Certo foi o
Manuel Bandeira, que não entrou de todo nessa história. Isso sem falar nos
marginalizados como Graça Aranha e Monteiro Lobato; o primeiro soube enxergar,
antes de muitos, os enganos e os horrores do Fascismo e do Comunismo bem antes
de suas ascensões, é só ler o Canaã;
o segundo caiu no ostracismo, vitimado pelo “cooperativismo de suínos”, algo
que os paulistas de 22 aventaram como ninguém, por falar a verdade mais óbvia:
que aqueles trabalhos de Anita Malfatti, tão aclamados pelos seus patéticos colegas,
eram, e são até hoje, uma coisa ordinária. Não obstante, Monteiro nunca disse
que ela era má pintora ou que, pelo menos, não era talentosa. Há, também, as
inúmeras contribuições que os Contos
gauchescos de Simão Lopes Neto deram a Guimarães Rosa e ao seu Grande sertão: Veredas?
Para quem buscava a liberdade e o fim das segregações,
ninguém mais negou-nos a primeira, nem nos pregou mais a segunda, do que os
Modernistas paulistanos; não é à toa que, referindo-se ao Modernismo de 22,
Luís Augusto Ficher não se acanha em dizer que “o Modernismo brasileiro, quer
dizer, paulista, aquele que a gente aprendeu no colégio e hoje virou cânone
obrigatório, inescapável, a ponto de excluir (da escola, dos manuais de
história da literatura, portanto do horizonte prático da vida cultural) autores
que não rezem por aquele catecismo – para os gaúchos é fácil ver isso, por
exemplo, com o desprezo por Simões Lopes Neto, reduzido a ‘regionalista’ e,
pior ainda, ‘pré-modernista’. Sem valor, portanto”. A Semana paulista de Arte
Moderna, de 1922, foi o golpe de misericórdia na já moribunda cultura erudita
brasileira.
Vivendo vida adulta de 1900 até a sua morte, em 1914,
Augusto dos Anjos coexistiu com os mais diferentes estilos literários
e, respectivamente, com escritores que, além de se integrarem a estes estilos,
levaram consigo uma cultura erudita de massa e seus rudimentos, como Aluísio
Azevedo, que morre em 1913; Inglês de Souza, morto em 1919; Machado de Assis e
Arthur Azevedo, falecidos em 1908 para citar realistas e naturalistas; além de
poetas parnasianos, simbolistas, seus colegas, por assim dizer,
pré-modernistas, e outros, como Coelho Neto, morto em 1934; Alberto de
Oliveira, 1937; Raimundo Correia, 1911; Olavo Bilac, em 1918; Joaquim Nabuco
(este, ainda, um romântico, no melhor sentido do termo), em 1910; Rui Barbosa,
em 1923 e, claro, Euclides da Cunha, em 1909.
Ciente de que, com estes e consigo, encerrava-se um
período brilhante de toda a nossa história, foi que o poeta nascido no engenho
Pau D’Arco muito bem escreveu seu soneto Debaixo do Tamarindo, onde podemos encontrar o verso que intitula
este post; verso com “jogo de palavras” como, também, nos lembrou Houaiss:
no primeiro sentido, o Tamarindo guarda, como bem escreveu, “o
passado da flora brasileira”, porque, como indivíduo, revive a aventura
biológica de sua espécie, havendo nele, como que fossilizados (a palavra paleontologia é
a ciência que dos fósseis dos animais e vegetais), até os carvalhos; no segundo
sentido: note-se que o poeta se chama Augusto Carvalho Rodrigues dos
Anjos, razão porque a notação com maiúscula para indicar sua família e toda a
humana metafísica que a envolve, também vítima de um decadentismo que a poesia
de Augusto dos Anjos, como nenhuma outra tratou de dissecar e discernir.
No tempo de meu Pai, sob estes galhos,
como um vela fúnebre de cera,
chorei bilhões de vezes com a canseira
de inexorabilíssimos trabalhos.
Hoje, esta árvore, de amplos agasalhos,
guarda, como uma caixa derradeira,
o passado da Flora Brasileira
e a paleontologia dos Carvalhos!
Quando pararem todos os relógios
de minha vida, e a voz dos necrológios
gritar nos noticiários que morri,
voltando à pátria da homogeneidade,
abraçado com a própria Eternidade
a minha sombra a de ficar aqui!
***
Hoje, 6 de junho de 2012, completam-se, exatamente, 100
anos do lançamento do livro Eu, do
poeta Augusto dos Anjos (já publicado aqui em fevereiro deste mesmo ano); um
ícone, segundo o poeta e amigo Florisvaldo Mattos, que tão hábil e gentilmente
me lembrou desta data tão imortante, – talvez único –, único representante do
expressionismo na poesia brasileira, equiparando-se a grandes poetas alemães
Georg Trakl, Georg Heym e Gotfried Benn, que alcançaram a fama nos começos do
século passado, mas, e isto é o que impressiona, talvez dele desconhecidos.
Augusto dos Anjos representa, tanto para mim, como para o poeta Florisvaldo Mattos,
a nossa primeira, e verdadeira, manifestação de Modernismo, ignorado
irresponsavelmente pelos organizadores e ideólogos da Semana de 22. Por ser, certamente,
o poeta mais singular de nossa literatura e, também, o mais editado, este blog
lhe faz uma devida homenagem, em uma publicação única como também o é e à sua
obra. A seleção de poemas é do poeta Florisvaldo Mattos, que também sugeriu 43ª
edição de Eu, da Bertrand Brasil, como a melhor entre todas, pois “corrige todas as gralhas de edições anteriores", e que é uma realização do baiano, já morto, Ivaldo Pio de Azevedo, que, segundo o poeta: não era "um homem de Literatura.
Atenciosamente,
Silvério Duque
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