quarta-feira, 2 de maio de 2012

GILKA MACHADO (1893-1980)


Gilka da Costa de Melo Machado nasceu no Rio de Janeiro, a 12 de março de 1893. Era fi-lha da atriz de teatro Teresa Costa e do poeta Rodolfo Machado. Também seus avós e bisa-vós haviam sido artistas, e sua filha, Eros Volúsia, tornou-se uma bailarina de sucesso. Gilka foi pioneira na utilização do erotismo na poesia feminina brasileira. Seu interesse pela poesia começou na infância, mas sempre precisou conciliar a vida difícil com a atividade literária. Já casada e com filhos, trabalhou como diarista na Estrada de Ferro Central do Brasil, recebendo um magro salário. Estreou nas letras vencendo um concurso literário do jornal A Imprensa, dirigido por José do Patrocínio Filho. Na ocasião, houve manifestação negativa, qualificando seu trabalho como "próprio de uma matrona imoral". Os críticos mais novos, porém, reconheceram a importância da sua proposta, que pretendia a libertação dos sentidos e dos instintos. A obra de Gilka Machado pertence à escola poética do Simbolismo, e dela adota as imagens mais recorrentes. Contudo, Gilka caminhou para a ruptura com seus contemporâneos, não só pela ênfase na temática do erotismo, mas também pela referência a aspectos sociais que oprimem a mulher. Utilizou-se, quase sempre, de um conjunto de elementos simbólicos com os quais introduz a sua mensagem: a flor, os gatos, a noite, o vento. Além de talentosa poetisa, Gilka também era urna mulher do seu tempo, que participou dos movimentos em defesa dos direitos das mulheres. Fez parte do grupo da professora Leolinda Daltro que fundou em dezembro de 1910 o Partido Republicano Feminino, do qual foi segunda-secretária. Publicou Cristais Partidos (poesia, 1915), Estados de alma (poesia, 1917), Mulher nua (poesia, 1922), A revelação dos perfumes (poesia, 1923), Meu glorioso pecado: amores que mentiram que passaram (poesia, 1928), Sublimação (poesia, 1938), Carne e alma (poesia, 1938); O meu rosto (antologia e novos poemas, 1947), Velha poesia (antologia comemorativa do cinqüentenário da estréia, 1965), Poesias completas (1978). Recebeu o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, em 1979. Faleceu no Rio de Janeiro, a 17 de dezembro de 1980.








FELINA
           à minha gata


Minha animada boa de veludo,
minha serpente de frouxel, estranha,
com que interesse as volições te estudo!
com que amor minha vista te acompanha!

Tens muito de mulher, nesse teu mudo,
lírico ideal que a vida te emaranha,
pois meu ser interior vejo desnudo
se te investigo a mansuetude e a sanha.

Expões, a um tempo langorosa e arisca,
sutilezas à mão que te acarinha,
garras à mão que a te magoar se arrisca.

Guardas, ó tato corporificado!
a alta ternura e a cólera daninha
do meu amor que exige ser amado!


***




IRONIA DO MAR

Soa um grito de dor... e o detono de uma onda,
Como uma salva, atroa e repercute, pelos
Longes do ar... De onde veio a voz o ouvido sonda
E, em vão, busco escutar do náufrago os apelos.

E o truculento Mar sinistramente estronda,
Ruge, regouga, rola, espuma, em rodopelos,
E, talvez, porque, agora, almo tesouro esconda,
Cada vez mais feroz se arrepia de zelos.

Para a presa reter, muralhas de esmeralda
Ergue, e, num riso atroz de realizado gozo,
Veste-a de rendas mil, de flores a ingrinalda;

Move a cabeça informe, as longas cãs balança,
E, alçando a larga mão, num gesto vitorioso,
Mostra, cinicamente, um cadáver de criança.


***





LÉPIDA E LEVE

Lépida e leve
em teu labor que, de expressões à míngua,
o verso não descreve...
Lépida e leve,
Guardas, ó língua, em teu labor,
gostos de afago e afagos de sabor.

És tão mansa e macia,
que teu nome a ti mesma acaricia,
que teu nome por ti roça, flexuosamente,
como rítmica serpente,
 e se faz menos rudo,
o vocábulo, ao teu contacto de veludo.

Dominadora do desejo humano,
Estatuária da palavra,
ódio, paixão, mentira, desengano,
por ti que incêndio no Universo lavra!...
És o réptil que voa,
o divino pecado
que as asas musicais, às vezes , solta, à toa,
e que a Terra povoa e despovoa,
quando é de seu agrado.

Sol dos ouvidos, sabiá de tato,
ó língua-idéia, ó língua-sensação ,
em que olvido insensato,
em que tolo recato,
te hão deixado o louvor, a exaltação!

- Tu que irradiar pudeste os mais formosos poemas!
- Tu que orquestrar soubeste as carícias supremas!
Dás corpo ao beijo, dás antera à boca, és um tateio de alucinação,
és o elastério da alma... Ó minha louca
língua, do meu Amor penetra a boca,
passa-lhe em todo senso tua mão,
enche-o de mim, deixa-me oca...
- Tenho certeza, minha louca,
de lhe dar a morder em ti meu coração!...

Língua do meu Amor velosa e doce,
que me convences de que sou frase,
que me contornas, que me vestes quase,
como se o corpo meu de ti vindo me fosse.
Língua que me cativas, que me enleias
os surtos de ave estranha,
em linhas longas de invisíveis teias,
de que és, há tanto, habilidosa aranha...

Língua-lâmina, língua-labareda,
Língua-linfa, coleando, em deslizes de seda...
Força inferia e divina
faz com que o bem e o mal resumas,
língua-cáustica, língua-cocaína,
língua de mel, língua de plumas?...

Amo-te as sugestões gloriosas e funestas,
amo-te como todas as mulheres
te amam, ó língua-lama, ó língua-resplendor,
pela carne de som que à idéia emprestas
e pelas frases mudas que proferes
nos silêncios de Amor!...




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