quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

ALEXEI BUENO (1966 - )

Alexei Bueno, um dos poetas mais singulares e importantes da poesia contemporânea brasileira, nasceu no Rio de Janeiro. Publicou, entre outros livros, As escadas da torre, 1984, Poemas gregos, 1985, Nuctemeron, 1987, A decomposição de J. S. Bach e outros poemas, 1989, Magnificat, 1990, O Aleijadinho, roteiro cinematográfico, 1991, A chama inextinguível, 1992, Lucernário, 1993, A via estreita, 1995, A juventude dos deuses, 1996, Entusiasmo, 1997. Como editor da Nova Aguilar organizou a Obra completa de Augusto dos Anjos, 1994, a Obra completa de Mário de Sá-Carneiro, 1995, a atualização da Obra completa de Cruz e Sousa, 1995, a Obra reunida de Olavo Bilac, 1996, a Poesia completa, de Jorge de Lima, a Obra completa, de Almada Negreiros, 1997, a Poesia e prosa completas de Gonçalves Dias, 1998, e a nova edição de Poesia completa e prosa, de Vinicius de Moraes, neste mesmo ano. Publicou também, pela Nova Fronteira, Grandes poemas do Romantismo brasileiro, 1994, e uma edição comentada de Os Lusíadas, 1996. Traduziu As quimeras, de Gérard de Nerval, editado pela Topbooks, também com edição portuguesa, bem como, pela Lacerda Editores, a primeira edição brasileira, prefaciada e anotada, da História Trágico-Marítima, entre outros...




O BORDADO CRUEL


Quando era noite, atrás daquela porta,
junto a uma vela duas velhas riam
Matando aos poucos uma aranha torta.

E a alegria que elas dividiam
Poucos tiveram já no mundo um dia,
Mas os que a achavam sempre a bendiziam.

Cheia de medo, a criatura fria
Dançava horrível rente de uma chama
Que lentamente o corpo lhe roía,

E as velhas rindo a observar da cama
Iam falando sobre de que modo
Com dor mais lenta um corpo vil se inflama.

Espécie estranha de um vivente lodo,
Sendo corcunda e só com sete pernas
A aranha uivava por seu corpo todo

Que se expandia em inchações externas
Causando às velhas, com o vermelho horrendo
Do seu ardor, as sensações mais ternas...

Emocionadas, com as mãos tremendo,
Vieram então com um bando de alfinetes
Que em cada pata foram se prendendo,

E a aranha presa de mil cacoetes
Foi só os espinhos de uma prata ardente
Que a recobria em infernais coletes.

E nesta arte foram indo em frente,
Depois agulhas, e um perfume ardido,
E ao fim de tudo uma tesoura ingente,

Até que o fogo e o animal vencido
Murcharam juntos sobre a mesa irada
Em mil pedaços de um negror transido,

E ambas as velhas, conhecendo o nada,
Com face imensa devoraram tudo
Que lhes restava da fatal jornada.

Enquanto, a olhá-las, um retrato mudo
De seu marido ia chorando as dores
Que o recobriam no ancestral escudo,

E todo o chão ia se abrindo em flores
E
uma criança, que ninguém notara,
Pela janela olhava sem temores

E ia crescendo, e de uma forma rara,
Enquanto as velhas, enxugando as portas,
Varriam tétricas, na noite clara,

Todo o amargor das profecias mortas!
 

***



À FLORBELA ESPANCA


Amada, por que eu tive a tua voz
Depois que o Nada teve a tua boca?
A lua, em sua palidez de louca,
Brilha igual sobre mim, e sobre nós!...

Porém como estás longe, como o algoz
De um só golpe sem fim — a Morte — apouca
Os gritos dos que esperam, a ânsia rouca
Dos que atrás têm seu sonho, os grandes sós!

Aqui não brilha o mundo que engendraste
Como o manto de um deus, e astros sangrentos
Não nos rolam nas mãos da imensa haste.

E só estes olhos meus, que nunca viste,
Se incendeiam, vitrais na noite atentos,
Voltados para o chão aonde fugiste!


***


ODE IX


Só superando encontramos alguma alegria,
Escravos dialéticos de um delírio de opostos,
Só esmagando, só conquistando, nunca por nós mesmos repletos,
Só penetrando nos muros. E quantas cidades tomadas,
Mesmo portão gargalhando e estirando uma língua de fogo,
Gritam vermelhas e ardem nas nossa íris exaustas.

Só pisando subimos,
Só derrotando vencemos,
Só conformando o outro a nós o amor nos alcança,
E tudo isso com sermos, seguramente sermos o outro
Até que nada nos reste de escapatória ou abrigo.

Não somos, não seremos nunca
Como Dionisos, ébrio conquistando a Índia
Entre tambores e tirsos, aclamado das ninfas, dos sátiros,
Um ramo de vinha é o seu chicote, um nariz vermelho a sua espada,
E os conquistados o aplaudem e beijam e vêm engrossar o triunfo
Que Pã conduz na vanguarda, tocando na flauta.

...Mas onde estará ele agora, em que escarpa, em que umbrosa
Solidão de enluarados galhos, rirá ainda o pai da alegria?
Nenhum devoto liba em suas aras, os ecos somente
Veneram-no ainda. De que rirá, que verá que nós nunca veremos,
O desterrado senhor de um plácido pacto entre os homens,
Enquanto nós por aqui, às seis horas da tarde,
Em meio às latas de lixo, descemos em bando às entranhas da terra?

Fulminante é qualquer nossa glória, pisando os caídos,
Que outra alegria além desta e da arte, da prece e do amor nos foi dada?

( — Ouçam, nenhum navio aparecerá.
Que ficará de nós? E no entanto matamos,
Sem pena, sem pranto, por sermos por último a festa dos peixes.)

Pois vejam como ele caminha,
Vejam como ele avança,
O filho de Filipe, o descendente de Hércules, deiforme e invicto,
Vejam como ele marcha
Sobre Darios vencidos e humilhadíssimas púrpuras,
E abraça as muralhas, e salta os desertos, e aplaina as montanhas,
Novo Aquiles sem flecha de Páris que o acerte, humanismo deus
Musculoso e potente em beleza triunfante.

Se nos fosse dado ser isso,
Um Alexandre cada um, varrendo a Terra,
Plena nos seria a vida. Mas a bonança é a nossa inimiga,
A calmaria, não a tempestade, é que nos espera ao varar o oceano,
Nos desfiladeiros minúsculos, com o único perigo do nada,
é que nós marcharemos,
Ainda que borbulhe em nós o canto do deus, e Amor Vencedor,
Durante ou após nosso olhar, pisoteie a disputa dos vermes.

( — E mesmo que venha o navio
Que seremos além de uma sombra na história dos astros?)

E ele continua
Até a Bactriana, a Índia novamente
Sem tirsos, sem vinha, dançando despido, tomado
Da ígnea plenitude de um deus,
Como nós nunca fomos, até que um mosquito,
Invulnerável, divino, o aferroe e destrua
na corrupta cidade de inúmeras portas.

(O esquecimento é a nossa lepra, e assim, no dia final
Um dos quinze falou, um navio passara sem vê-los:
— Gravemos numa tábua nossos nomes, tudo o que sofremos,
E a preguemos no mastro. Assim talvez os homens conheçam
O que nós passamos, nós, os da Medusa. —
Todos os conheceram. Mas um pintor tosquiado,
Unicamente, o soube.)

Não, não é esta a vitória,
Antes com Roxane na beira do rio
Qual Dionisos sábio consolando Ariadne
Na vermelha Naxos.

Não é essa a vitória. Não escutes, bêbado
Com a miragem cósmica, o conselho de Krishna
Ao indeciso Arjuna,
Pois se tudo é guerra,
E o tempo a guerra é infindável, sejamos o vento
Que sussurra entre as armas, sejamos a terra
Que os sequiosos exércitos sonham e que é de ninguém,
E o silêncio imóvel
Entre dois estampidos, que a ambos devora!

Sejamos
No fragor de estandartes, a ave que os roça,
Na orgia do fogo,
A chuva infantil que inesperada desce,
No borbulhar das almas o sono viscoso
Dos caracóis no lodo,
No estampado em pânico das pegadas fugindo
Do chão que as convida
A relva que o cobre.

Pois nosso é o poder e a glória, e do que lacerarmos
No nosso corpo, o que existe, cairá nosso sangue na terra.
  

TORQUATO NETO (1944 - )


Torquato Pereira de Araújo Neto nasceu em Teresina, Piauí, no dia 09 de novembro de 1944. Foi contemporâneo de Gilberto Gil  no colégio em que estudou, em Salvador, tornando-se amigo do compositor e conhecendo também os irmãos Caetano Veloso e Maria Bethânia. Em 1966, mudou-se para o Rio de Janeiro, começando seus estudos de Jornalismo. Mesmo sem ter concluído o curso, iniciou-se na profissão trabalhando em diversos jornais cariocas, tendo criado e redigido a coluna Geléia Geral no jornal carioca Última Hora. Um dos criadores do movimento tropicalista, é o autor de inúmeras letras de músicas de sucesso, entre as quais destacamos Mamãe, Coragem, Geléia Geral, Domingou, Louvação, Pra dizer adeus, Rancho da rosa encarnada e Marginália II. Em 10 de novembro de 1972, suicidou-se deixando o seguinte bilhete: "Tenho saudade, como os cariocas, do dia em que sentia e achava que era dia de cego. De modo que fico sossegado por aqui mesmo, enquanto durar. Pra mim, chega! Não sacudam demais o Thiago, que ele pode acordar".






COGITO


eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.


***



O POETA É A MÃE DAS ARMAS


O Poeta é a mãe das armas
& das Artes em geral —
alô, poetas: poesia
no país do carnaval;
Alô, malucos: poesia
não tem nada a ver com os versos
dessa estação muito fria.

O Poeta é a mãe das Artes
& das armas em geral:
quem não inventa as maneiras
do corte no carnaval
(alô, malucos), é traidor
da poesia: não vale nada, lodal.

A poesia é o pai da ar-
timanha de sempre: quent
ura no forno quente
do lado de cá, no lar
das coisas malditíssimas;
alô poetas: poesia!
poesia poesia poesia poesia!
O poeta não se cuida ao ponto
de não se cuidar: quem for cortar meu cabelo
já sabe: não está cortando nada
além da MINHA bandeira ////////// =
sem aura nem baúra, sem nada mais pra contar.
Isso: ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. ar. a
r: em primeiríssimo, o lugar.


poetemos pois


***




A RUA


Toda rua tem seu curso
Tem seu leito de água clara
Por onde passa a memória
Lembrando histórias de um tempo
Que não acaba

De uma rua, de uma rua
Eu lembro agora
Que o tempo, ninguém mais
Ninguém mais canta
Muito embora de cirandas
(Oi, de cirandas)
E de meninos correndo
Atrás de bandas

Atrás de bandas que passavam
Como o rio Parnaíba
O rio manso
Passava no fim da rua
E molhava seus lajedos
Onde a noite refletia
O brilho manso
O tempo claro da lua

Ê, São João, ê, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão
Ê, Parnaíba passando
Separando a minha rua
Das outras, do Maranhão

De longe pensando nela
Meu coração de menino
Bate forte como um sino
Que anuncia procissão

Ê, minha rua, meu povo
Ê, gente que mal nasceu
Das Dores, que morreu cedo
Luzia, que se perdeu
Macapreto, Zé Velhinho
Esse menino crescido
Que tem o peito ferido
Anda vivo, não morreu

Ê, Pacatuba
Meu tempo de brincar já foi-se embora
Ê, Parnaíba
Passando pela rua até agora
Agora por aqui estou com vontade
E eu volto pra matar esta saudade

Ê, São João, ê, Pacatuba
Ê, rua do Barrocão

HEITOR BRASILEIRO FILHO (1964 - )

Heitor Brasileiro Filho é ensaísta, cronista e poeta. Natural de Jacobina, Bahia, reside em Ilhéus desde 1994. Licenciado em Letras, é pós-graduado em Estudos Comparativos em Literaturas de Língua Portuguesa. Integra os livros Diálogos: Panorama da Nova Poesia Grapiúna (Editus – Via Litterarum); O Triunfo de Sosígenes Costa (ensaio – Editus UESC-UEFS), e Bahia de todas as letras (conto – Editus – Via Litterarum). Acaba de lançar o livro de poemas O Chão & A Nuvem (Editora Mondrongo – 2013)





SOLUÇOS SÍSMICOS


Farto é o fogo
dos vulcões
julgados extintos

soluço sísmico
na contração do parto

pende um quadro
trêmulo
na parede do útero

Sem a distorção
da moldura
arde uma tela
de Cícero Matos:

deserto
a ser florido
rio morto
a ser aguado

Jacobina
não é apenas um retrato
na parede
um berço
a ser embalado. 


***



O GRANDE ESPETÁCULO DA TERRA


Hoje não vou à Broadway –
pois não é que nunca vou à Broadway –
que importa fogo ou neve em New York?
Vou ficar para o grande espetáculo da terra

como o circo de Maru
com a rumbeira Margareth
e os clowns Chega-Chega e Batatinha
no ritmo inebriante de Tijuana Taxi

meu Deus, que fim levou a rumbeira Margareth
delírio da criançada de perdida infância
casou-se e foi para Feira de Santana

véus – muitos véus – iam-se dissolvendo um a um
agora grinaldas, o buquê, girândolas de pétalas
uma tiara de corações partidos
e aquela calda toda
                                   de branco

imagino-a sob o altar da Catedral
da sagrada Nossa Senhora de Sant’Anna
ao eterno som de Tijuana Taxi

“Pã! Parampampã-pã-pã-pã!”

(apoteose dos grotões de minha terra:
na aurífera
na agrícola
nessa imensidão distante e tão próxima
como a antiga cidade de Jacobina

sem o arpejo, o canto, o desespero de Bob Silva
sem o auto-faltante da Rádio Nacional
nem a doce viola de Paulo da China
numa esquina perdida da Rua Ana Nery
mas cristalizada numa antiga cantiga)

Há um momento em que os malabares
                                       eternizam-se no ar

e o trapezista projetava-se
para o alto e precipitava-se
sobre um assoalho de taipás
para o delírio da meninada
                          sem infância
sem rede
sem coração

e lá estava o homem-borracha
estatelado em linha reta
 – e a linha tênue –
Na linha oblíqua do chão

“Pã! Parampampã-pã-pã-pã!”


Têm-se infância e memória?
A quem importa a ruína do Empire State?
Que importa a estrutura vítrea do Louvre
o burburinho do Quartier Latin
as ruínas gregas e as pirâmides no Cairo
o Coliseu e o túmulo de Tutacamon?

Meu Deus, o que importa
a privada de ouro de um sultão em Omã
se o levante do Oriente
é o que há de mais moderno?

Que importa aquele edifício em Dubai
ante o singelo pedido da natureza –
subcutânea tatuagem e a fina estampa da pele?

Deem-nos infância e memória
e ficaremos para o grande espetáculo da terra.  

***




LIRIUM

quem
bem me
quer
não me
despe
      ta
      la




segunda-feira, 18 de novembro de 2013

OCTAVIO MORA (1934-2012)


Nascido na Argentina, mas radicado no Brasil, Octavio Mora foi um dos maiores representantes da poesia de 45 e um dos gênios poéticos mais injustiçado de nossas letras. Aposentou-se como professor titular de Literatura n UFRJ. Estreou em poesia com o livro Ausência viva (1956). Depois publicou Terra imóvel (1959). A esses se seguiram Corpo habitável (1967), Pulso horário (1968), Saldo prévio (1968) e Exílio urbano (1975). Também formado em Medicina, exerceu durante alguns anos a profissão de médico. Na ocasião de sua morte, sobre ele e sua poesia, o crítico Jessé de Almeida Primo escreveu a seguinte nota: “Soube hoje do falecimento de um dos maiores poetas do país, Otávio Mora, autor de duas obras-primas da nossa literatura, Ausência Viva e Terra Imóvel, ambas dos anos 50. Pedro Sette-Câmara me enviara um e-mail informando do fato e disse que o soube pelo jornal O Globo, no qual informava ter lido apenas "uma nota de falecimento(...), que não dizia nem quando, nem como, só manifestava saudades". Quando um poeta desse porte morre e os cadernos culturais não se ocupam do assunto, é porque de fato o país está embrutecendo”.





Ulisses



Ulisses em Ítaca, vivo ausente
Talvez seja resíduo da viagem,
mas é tão pouco minha esta paisagem
que só posso estar longe desta gente:
 
Se foi minha, cortaram-na tão rente
que a memória mudou toda a folhagem –
falávamos idêntica linguagem –
Falo agora linguagem diferente:

Vivo em Ítaca ausente: minha fronte
alargou-se, meus olhos são maiores,
e na memória trago outros países:

Contudo, já foi meu este horizonte,
já fui jovem aqui : olho arredores,
E vejo Ítaca ao longe, sem raízes.


***

IFIGÊNIA


Como estátua de vento, pedra gasta,
sopra Ifigênia sempre na memória,
e estamos nela sem escapatória
como o tempo nas pedras: só se afasta

(devido à semelhança com o vento
de seu todo), para estar em nós, aérea,
desprovida de contornos, em matéria
capaz de dar volume ao pensamento

que surge do que some: quando volta
volta cheia de pássaros e tudo
se lhe gruda ao olhar: reminiscência

de seus passos, o pássaro se solta
e em nós gravita a terra: conteúdo
e volume final de sua ausência.


***



SEMPRE EVA


Mordendo, ao modo de quem come,
a polpa escuras das maçãs,
as noites, tardes e manhãs
umas nas outras, como a fome.

Partes as frutas com os dentes
e encontras, sob a casca, a cor
verdadeira  de seu sabor
íntimo. Açúcar som sementes.

Pelas sementes, mais
ou seu sabor ácido, a planta
cresce-te dentro da garganta
até os pés.Dizes-te: escuto.

Inseparável das raízes
faz-se o silêncio sem escolha
que reproduz, folha por folha,
árvore audível, o que dizes.

Macias, as palavras, dentro
das frases, ásperas, mastigas
e a tua própria voz obrigas,
maçã, ao silêncio de seu centro.

Calas? Para que não transbordes
do teu silêncio e se descubra
o quanto és doce, a polpa rubra,
sempre, do próprio lábio mordes.

FELIPE GARCIA DE MEDEIROS (1989 - )



 
Nasceu em Imperatriz, no Maranhão. Formado em Letras – Português e Literaturas pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte mestrando na mesma instituição (2012). É autor do livro Frio Forte (Multifoco, 2012).




POEMA

recolho as palavras
e, fatalmente,
rogo em silêncio
pelo verbo
que será a porta
de onde
sairei
e tu me habitarás

***

A Rosa Glacial


A
flor
glacial

derrete
sobre o país

o percussor sombrio

são as sete
pragas do Egito
os sete pecados capitais

a voz do infinito
sagaz,
os
prados de concreto, a paz,
o olho secreto de Hórus,

- a flor fervilha
pelos poros
e a multidão brilha

como o outono deita a névoa
sob suas folhas
e a primavera
rompe
os
botões no espaço

da garganta dos jovens o sopro

corre nos pulmões
embaralha
cadeias
e destrói
em chamas os corações
de palha

na mesa, jogamos cartas e poemas

elevando os grãos e os galhos
às veredas das cinzas
e da ressurreição

urram, tentam impedir,
dão pimenta para Adão –
dão
vinagre para Cristo
crucificam,
bebem, riem nas estripulias,
e o raio cai dos céus
e o nosso
reino
se eleva à Deus

na variedade do milagre, saímos da hipótese

ninguém vê senão grito

“o parâmetro do desamparo
é o agito”

ninguém vê senão atrito
estamos aqui, amigo,
segue
o
rito.

Foucault finge
libelos
no gabinete
infinito
da
sua escrita
e o
esquete
de Maiakóvski
agita
o burguês
na rua

o povo mira os olhos contra o sol

e nos esquecemos de abandonar o corpo
para, no dia
através da noite
surgirmos, anônimos,
como
a brisa de outubro
e atingir
o tamanho

dos demônios da desolação.

Os tempos são frios
e as horas
obtusas
como o templo do sol

é por isso que cada um se levanta do poente
e borra as paredes, os prédios,
os trens,
os ônibus, as luas,

ninguém aqui está contente

as formigas
se aglomeram nas curvas, mirmidões,
não são peixes,
insetos,
bichos –

(o homem só descansa quando vive
ou após)

são homens que se empilham na cidade
um a um
somos
nós

a perna que se estica no universo
do panteão das estrelas,
para abrir-se
junto
ao líquido cálido
destes tempos,
desta fúria,
dessa flor que se desfaz no ócio das esferas

e gira sobre as sequelas,

doce dínamo dessa candura!


***



Canto-Navalha


Rasga-mortalha,
ouço-a
e não consigo escrever um verso
sobre o seu canto-navalha.

Estridula, pia, pragueja, urra –
não preciso
a
melodia, os raios da sua ranhura.

“Não perdeu a poesia”
o poeta me diz
e eu sei
um notebook é um notebook
e uma paisagem plana
faz girar o fluxo
do
território,

o canto da Rasga-mortalha me estranha

não tenho mais que relatos da sua fatalidade.

Um dia dois – talvez mais,
não existe poema em mim,
explicável?
“Tanto faz”
ninguém sabe
vejo filmes ou leio alguma coisa
é difícil
imaginar um poeta sem uma carta na manga

(ou um mágico sem truques,
as morenas/as rimas/o batuque).

Comprei o Robert Burns
e só encontrei canções
do meio dia
com
árvores e cotovias
e, no mais,
um estribilho

“ah, que tempos passados,
amigos, os que se passam”.

No desastroso silêncio do açoite,
enceno atritos
no
escuro
(corre no ar
infinitos
pios
vorazes nos vales da noite)

estrelas caem
e a Rasga-mortalha me desfigura em gritos.