sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

JOÃO FILHO (1975 - )

Um doa mais promissores poetas de sua ageração, João Filho nasceu em Bom Jesus da Lapa, estado da BA. Participou de algumas antologias, dentre elas: Terriblemente felices. Nueva narrativa brasileña, Emecé Editores, 2007, Argentina; 90-00: cuentos brasileños contemporâneos, Ediciones Copé, 2009, Peru; Geração Zero Zero, fricções em rede, Língua Geral, 2011, Brasil; Popcorn unterm Zuckerhut, Verlag Klaus Wagenbach, 2013, Alemanha. Publicou Encarniçado, contos, Editora Baleia, 2004; Ao longo da linha amarela, 2009; A dimensão necessária, poesia, Mondrongo, 2014; Dicionário amoroso de Salvador, Casarão do Verbo, 2014. 











NITIDEZ SUBMERSA




Nos sapatos confortáveis
um pouco velhos e gastos
a fuligem das cidades
redesenha o seu mapa.

Não me venham com saudades,
sombras, vultos e fantasmas,
o peso e a profundidade
das coisas não nos sufocam.

Dos caminhos caminhados
— avenidas, becos, praças —
multidões tumultuosas
na fuligem dos sapatos.

Pó do mundo respirado
em seu tédio corrosivo,
não escapam os voos altos
das naves mais arrojadas.

Na verdade, nada escapa.
É preciso a cada istmo
contra essa névoa cegante
renovar o gesto limpo,

porém não lave os sapatos,
não porque registre tantos
itinerários, andanças,
mil labirintos urbanos, a

fuligem aí pousada,
cartografia amorosa,
indica veios, filões
dessa nitidez submersa.

Alargue as tuas pupilas:
paciência ao inspecionar
cada trecho dessas nódoas;
nos interstícios, estrias,

nas grafias do diáfano,
se entrevê pela fuligem
a clara sustentação
dos fios frágeis do mundo. 


***



PÓS-FÁBULA




No seu delírio de durar,
buscou a forma permanente,
que atravessasse os mares findos
e desse em praias do presente.

Não bronze ou aço, algo mais dúctil,
que suportasse as elegias
que as estações ditam ao tempo
na sua má caligrafia.

Envelheceu em tal propósito,
a elaborar um falso eterno:
em cada ruga um desespero,
em cada perda um novo inferno.

E não buscava só memória,
nome num muro ou numa mente,
mas extrair o cerne vivo
do que ontem fora e é presente.

Antes do fim logrou, ó suma!,
a sua bilha de aporia,
que lá chegou, nas praias findas —
bela, intocável e vazia.








 ***




3 — Uma mulher toda música


Eu pretendi colhê-la num só gesto,
que fosse imaterial, também tangível,
tentei a forma livro, o sonho aberto,
estive atento ao peso do invisível.

Busquei coisas menores, mais modesto,
— uma manhã urbana, a luz possível.
Tudo inútil, desejo o cerne e aperto
o escuro, mesmo sendo tão legível

o corpo branco, nu, dentro da tarde.
Agora me concentro em não fixá-la
em pauta ou pensamento para dar-lhe

o ritmo necessário de quem cala,
a música a envolvê-la sem alarde
enquanto ela caminha pela sala. 

2007






SOLENGE REBUZZI (1951 – )


Nasceu no Rio de Janeiro é poetisa, psicanalista e doutora em Literatura Brasileira. Publicou em poesia, entre outros, Leblon, Voz e chão (2004), e o ensaio Leminsky, guerreiro da linguagem (2003).






A bota de inverno

Ela está em negro.

No trem, a mulher esconde-e
sob as pregas
de sombras azuis.
o frio respira
mãos de unhas cuidadas,
a pedra verde fascina a outra mulher.
Elas se olham rapidamente,
o trem-metrô-em-trilhos
carrega torres de Babel:
Línguas e olhares.

O corpo em crise
(fevereiro de 2005)
não percebe o poema
que começa.
                    Não me mexo,
Sinto os pés inchando
devagar. A pele parece ausente,
as unhas dos dedos
pedem espaço. Penso:
ao chegar em casa,
me deterei
- ao lavar os pés –
m a s s a g e a n d o  o s  d e d o s
(despidos de dóceis meias).

Algumas mulheres trazem consigo

os pés herança

na trama da linha que escorrega

sem derrame ou cicatriz.



 ***




Indianas

1
Cinco mulheres em véus e sandálias de plataforma alta.
Verão.


2

Eu não estava em Bombaim mas seus tornozelos tinham a tonalidade das pétalas de rosa, um pouco violeta. Corriam entre os carros assustadas.
Vislumbrei a calça jeans embaixo das dobras vermelhas da seda. Talvez, em função da maquiagem, da sensualidade do andar, eu tenha parado para olhá-las:
ritmo, perfume, cor...
Por um milagres elas surgiram. Foi como pude senti-las naquele longo boulevard Raspail.


3

Um pintor teria dito:
parem!
Degas pintaria a idade de seus pés ou de suas mãos? Matisse, os volumes e as formas
dos braços?
Abro um parêntese.
Fui ao dicionário. Procurei, sem saber bem onde estava indo, a palavra rubra.
Precisava do vocábulo para justificar meu poema que atraía sementes.


4

A “coisa” colorida. O vestido de uma Mulher pede para ser usado no plural,
v e s t i d o s  d e  M u l h e r e s.

Há mais coisas a dizer.
Narinas abertas respiram o ar quase púrpuro da luz.

Essas mulheres
na tela escritural,
não longe
uma das outras,
convivem com o final do dia.


5

Sobrancelhas arqueadas
à lápis noir
turquesa – entre – os olhos
não menos que outras cores
sobre a pele brilhante.
Um piscar de movimento brusco
é uma possibilidade
no novo mundo
do texto,
e distingue o jamais visto.

Enfim me rendo!



***



RUBRO


vermelho muito
vivo
da cor
de sangue.      
     


PE. JOSÉ JOAQUIM CORREA DE ALMEIDA (1820-1905)


Nascido e falecido na então vila de Barbacena, Minas, ordenou-se presbítero na cidade do Rio de Janeiro. Ser um padre não o impediu de ser um dos maiores poetas satíricos de seu tempo. Entre suas obras mais conhecidas, encontra-se: Sátiras e epigramas (1875); Sonetos e sonetinhos (1884) e Decrepitudes metromaníacas (1902).






DEGENERAÇÃO


Dos homens de civismo a pura raça
No torrão brasileiro degenera ;
A uberdade tornou-se tão escassa,
Que o terreno parece que não gera.

Por mais irrigação que se lhe faça,
Os fructos já não há, como os houvera;
A lavoura de outr'ora hoje é fumaça,
Cultivada fazenda hoje é tapera.

A indústria nacional é quasi nulla,
E é só de cavalheiro a que regula,
Consistindo nas trocas e baldrocas.

A terra, enfim, não é como era d'antes :
Depois de produzir muitos gigantes,
Produz agora lesmas e minhocas.


***



JUSTO EPIGRAMA

Não tem nada de notável,
nada tem de cousa rara
trazer o juiz por símb'lo
uma retorcida vara.

Se esta bem merece o epilheto
de flexível, dobradiça,
pôde-se dizer o mesmo
a respeito da justiça.



***


EPIGRAMA

Aprenderão aritmética
o pródigo e o avarento;

Nas operações ou contas
era diverso o talento.

Em repartir o primeiro
muito habilitado fica;

Pelo contrario o segundo
habilmente multiplica.