sexta-feira, 30 de setembro de 2016

WAGNER SCHADECK (1983 - )

Wagner Schadeck nasceu em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN) e com os periódicos Cândido e Rascunho. Em 2015, organizou a reedição de A peregrinação de Childe Harold, de Lord Byron, pela Editora Anticítera.







A CAVERNA


Última sessão de cinema.
Numa sala escura de edícula,
Como serpente, uma película
No chão desenrola o dilema:

O enredo emenda novo esquema?
Seria esta cena a partícula
De outra metragem sem matrícula?
Quando o término? Qual o tema?

Farol vigiando da cabina,
Há um projetor que rebobina
E avança as sombras de uma história…

E o espectador nessa caverna
Deseja ver na vida externa
Ao filme íntimo da memória.


***



DÍVIDA


O Tempo, terrível credor,
virá bater à nossa porta;
austero, deve nos propor
o saldo de uma conta morta.

Somam-se idades, à medida
que os anos devem diminuir.
Somos inquilinos em vida,
e a nossa casa há de ruir.


***




VINGANÇA


Vai ébrio de ódio. Mas equilibra-se. Em ambas
as mãos há um garrafão. No meio-fio tropeça
e em trôpego bailado bate com a cabeça
numa placa de trânsito. Ao pisar muambas

espalhadas no chão, parece gingar sambas.
Não há ninguém que o avise, ninguém que o impeça
do próprio pé molhar, mijando-se sem pressa.
Prossegue. O passo é duro, embora as pernas bambas.

Opera uma manobra, oculto atrás dos postes.
Marchando em plena rua, investe contra as hostes.
O pensa fazer, tão intrépido e indômito,

contra essa imensa grei? À turba, sem embargo,
avança resoluto, estufa o ventre largo,
lançando a todo mundo o nojo de seu vômito. 


TASSO DA SILVEIRA (1895-1968)


Tasso da Silveira nasceu em Curitiba, capital do Paraná. Formou-se bacharel em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, no Rio de Janeiro, em 1818, mesmo ano em que publicou seu primeiro livro de poesia, Fio d'Água. No ano seguinte, fundou e tornou-se diretor das revistas Os Novos, Árvore Nova, Terra do Sol, com Álvaro Pinto, América Latina, com Andrade Muricy e Cadernos da Hora Presente, com Rui de Arruda. Colaborou nos jornais O Momento, Rio-Jornal, A Manhã, e na Revista Sul-Americana. Foi secretário dos jornais Diário da Tarde e O Estado e redator do Diário da Manhã. Tasso da Silveira fez parte da revista Festa, na fase inicial do Modernismo, ao lado de Cecília Meireles, Murilo Mendes, Andrade Muricy. Esse grupo divergia do nativismo exagerado de Mário de Andrade e Oswald de Andrade e alimentava a chama neo-simbolista. Entre suas principais obras estão: Fio d’água (1918), A alma heroica dos homens (1924), Alegorias do homem novo (1926), As imagens acesas (1928), O canto absoluto (1940), Cantos do campo de batalha (1945), Contemplação do eterno (1952), Puro canto (antologia, 1956), Regresso à origem (1960), Poemas de antes (1966).




Transfusão


Olho-te e olho-me... E, após, sobre nós ambos cismo...
Tua alma, como pôde a minha alma prendê-la?
És candura e inocência, e eu vou errando pela
noite negra do mal, da imperfeição, do egoísmo...

És pura e eu sou impuro. Entanto (o íntimo diz-mo)
nossa mútua afeição nada pode contê-la...
– Para o meu doido olhar és a atração da estrela.
– Ao teu ingênuo olhar sou a atração do abismo...

E havemos de fundir nossas almas, Querida.
E iremos, até soar da vida o último dobre,
como em dois corpos, vês? Uma alma bipartida...

Mas traremos, também, ao fim dos nossos dias,
– tu, um pouco do lodo imundo que me cobre,
– eu, um pouco da luz excelsa que irradias...


***



PERFEIÇão


Doida escalada!... O olhar nevoento e baço
vou subindo a montanha... E, dia a dia,
mais incerto e mais trêmulo é meu passo,
mais a dúvida enorme me angustia...

Cada degrau vencido é uma agonia.
Sonho... mas para a altura ainda ergo o braço.
Sofro! – agudo punhal, lâmina fria,
com que eu mesmo, sorrindo, me trespasso...

Ah! Terei de rolar esse declive
que vim galgando, quase morto, exausto,
vendo perdido o meu esforço em vão?

Ou chegarei, à força que em mim vive,
lá no alto, mas erguendo em holocausto,
roto e a sangrar, meu próprio coração?...




***



Carne

a Andrade Muricy


Para purificar-me eu me faço o verdugo
de mim mesmo, e me obrigo ao cilício da dor.
Luta improfícua! Em vão minhas forças conjugo:
sou vencido na liça... O instinto é o vencedor...

Debalde eu me revolto e os ímpetos subjugo,
à explosão do desejo em vão tento me opor.
Alma! Tu sofrerás do corpo o eterno jugo,
curva-te para sempre ao domínio opressor!
Carne, que me tornaste um rastejante verme!
Ah! Pudera fazer-te impassível e inerme:
– brasa que se apagou, sombra, extinto clarão...

Carne, que matarás o sonho que me exalta!
Negra barreira a erguer-se, intransponível,
alta no caminho lustral da minha Redenção!...




MARIA LÚCIA MARTINS (1966-2016)

Baiana da região de Jequié é licenciada em Filosofia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro e especialista em Educação Matemática e Psicopedagogia  Clínica e Institucional,  é também autora de muitos livros de poesia: Espaço perplexo (1985), Entre medos, brinquedos (1993), Tempo indômito (1990) e A condição do Pégaso (2004).









GARÇAS


Antes não havia garças. (Antes
                            dos ventos).
Restos de estrelas navegavam a noite
                            (a nuvem escura)
e se alvejavam em seixos e ossos.
                            À mesma noite
acrescentam-se sombras: eram as penas
                            e a plumagem.
As garças não eram feitas: surgiam. Leves,
                            feitas de vôo
(o vôo primeiro). Garças de asas
                            emendadas em asas,
as garças passam penhascos, além,
                            os prados cinza.
O verde inda é longe. Longe, as aves
                            adivinham a terra.
As garças descem (como atraídas) e
                            sentem a primeira
sede. A água compreendida pela
                            sede. Jamais
a informação da água: as garças gestadas
                            de puro vôo.
Nos ventos, o olhar enfastiou-se.
As garças buscam clarão de madrugadas
(ou de crepúsculos: nenhum sinal
por distinguir a cor das horas).
As garças pisam areias virgens
(imprimem sua chegada: a cruz aberta)
beiras de charcos, beiras de lagos,
restos de mar incendiados ao meio-dia.

Às vezes, as garças se animam
com o assovio dos ventos chamando
a noite. E dançam. Dançam o passado
cravado às asas. Nunca procuram
caminhos de volta: foram apagados.
 

***



AUSÊNCIA


Este meu jeito estranho
de olhar dentro de mim
e não passar nenhum encanto ao Téo,

este meu jeito canhoto
de estranhar o mar, o ar, o quarto,
e o nó, à garganta, travado
ao elevador,

dá-me a esperança de que nem tudo
é meu desajeito: é tua ausência mesmo,
refletida na curva do caminho
onde costumavas me esperar.


***


GOIABAS BRANCAS


                   Raízes se retorcem (imitam cobras)
                                                        cravadas no chão.
                   A copa faz a filigrana: os vazados verdes
                   das folhas, geometria dos galhos.

                   O sol, artesão diário, confere as goiabas
                   pelo cheiro (a polpa e o branco da casca).

                   Mil passarinhos bicam o verão
                                                        da goiabeira
                   e gritam, fartos, de mesmo alvoroço:
                   “Já é-vem, já é-vem, já é-vem...”
Querem apagar o sono da terra.

A noite se abre aos mistérios.
                   As ninfas (árvores de fartos cabelos
                   negros) se enfeitam de jóias de prata
                                                        — goiabas brancas —
                   enquanto se vestem de toda lua.