terça-feira, 11 de junho de 2013

ANA ELISA MERCADANTE (1926 - )

Ana Elisa Viana Mercadante nasceu em São Luis do Maranhão em 1926. Poeta, diplomada em Letras (1945), diplomada em medicina (1953), médica psicanalista. Autora de Os ritos da noite





miragens


Os versos tristes surgem dos meus prantos,
Banhados pelas ondas, pelos sais, 
Dos frios, insistentes mares, tantos
Que me anunciam eras glaciais.

Se há restos de ternura pelos cantos,
Há tênues sóis que não me aquecem mais.
Vestiu-me a idade em castigados mantos
Precários nas arenas invernais.

Porém se a noite volta-me ao passado 
Retorno em alegrias, esperanças, 
Antigas cores, jovem ao teu lado,
Oásis vivo à seiva de lembranças. 

Rebelde ao tempo, o sonho, em seus ardis
Sempre floresce em quem já foi feliz. 


***



O DOCE PÁSSARO


Em raros, 
cada vez mais raros, 
momentos,
certos movimentos, 
às vezes bruscos, 
outros lentos,
tão ágeis modos de energia, 
passos
ou estender de braços
em graça 
e planos de harmonia,
em curvas
firmes de amplitude,
me instalo
em breve mocidade.

Indiferente ao tempo rude.
tendo por dote o infinito 
e por presente a eternidade.


***



PERFEIÇÕES


No ubíquo mar da minha inveja
nadam e surfam jovens seminus
Na pele espelho, o sol imprime ouros.
Montando águas, potros luzidios
empinam ondas.
Sobem na tensão
turbando arcos verdes de cristal.
Se lançam:
setas ávidas de vida
rasgando espumas.
Ícaros do mar
se escondem.
Pumas
se embrenhando em ventres
vão grafitando nomes de água e sal.
Ressurgem
lassos de êxtases
de espasmos
mas já buscando a volta, o renovar.

No horizonte vagas perfeições
formam volumes, planos e apelos.

No leito seda,
as curvas destruídas,
em letargia,
afagam pés que fogem.

São deuses.
Deuses alheios ao meu mau olhar.




JACINTA PASSOS (1914-1973)

Jacinta Passos nasceu em Cruz das Almas, Bahia, em 1914, foi autora de quatro livros de poemas — Momentos de poesia (1941), Canção da partida (1945), Poemas políticos (1951) e A Coluna (1958) —, elogiados por críticos do porte de Antonio Candido, Mário de Andrade, Aníbal Machado e Roger Bastide, entre outros. Seu livro mais importante, Canção da partida, foi ilustrado pelo artista Lasar Segall. Jacinta tornou-se uma das mais ativas jornalistas da Bahia na década de 40, escrevendo sobre os assuntos que mais a interessavam, pelos quais lutava: política, transformações sociais e posição da mulher na sociedade. Colaborou também com jornais e revistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Militante do Partido Comunista Brasileiro de 1945 até a morte, em 1973, dedicou grande parte da vida ao trabalho penoso, clandestino e cotidiano de luta por um Brasil menos injusto. A partir de 1951, sofreu crises nervosas periódicas, com delírios persecutórios, tendo recebido o diagnóstico de esquizofrenia paranóide, doença considerada progressiva e incurável. Apesar de internada em diversos sanatórios, jamais deixou de escrever, tanto poesia quanto prosa. Sua obra poética, fundada nas tradições populares da Bahia, contém fortes componentes líricos e apelo ao público contemporâneo, mas permanece pouco conhecida, pois seus livros, publicados por editoras de pequeno porte, tiveram tiragens muito reduzidas, sendo que apenas um deles, Canção da partida, foi reeditado, isso em 1990.  Fonte: http://www.jacintapassos.com.br








Estrela do Oriente

                                        para Bem Ami





I

Levantai-vos, párias de todo o mundo!
Não vedes? Ela vem vindo, a Estrela do Oriente,
alta, bela, imponente, os pés plantados no chão,
traz o fogo no olhar e uma foice na mão.



II

Canta, Jacinta, teu hino,
louva a Estrela do Oriente,
Mariana, Guiomar,
venham, venham me ajudar.

Não sei a cor de seus cabelos,
não posso saber,
não as linhas do seu corpo,
não posso saber.

Não posso vê-la à distância
como vejo o meu vizinho,
serei o seu sexo ou seu dedo mindinho?

Mariana! Guiomar!
Só na voz da própria Estrela,
podemos cantar.



***



Diálogo na Sombra


— Que dissestes,  meu bem?
Esse gosto,
Donde será que ele vem?

Corpo mortal.
Águas marinhas.

Virá da morte ou do sal?
Esses dois que moram no fundo e no fim.

— De quem falas amor, do mar ou de mim?


***



Canção do amor livre


Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.

Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.

Se me quiseres amar.

Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.

Teu corpo.

Relâmpago, depois repouso
sem memória, noturno.





ADRIANA LISBOA (1970 - )

Adriana Lisboa nasceu no Rio de Janeiro e vive atualmente nos Estados Unidos. Entre seus principais livros estão os romances Azul-corvo e Sinfonia em branco. Recebeu, entre outros prêmios, o José Saramago e o Moinho Santista. Seus livros foram publicados em doze países. www.adrianalisboa.com. A foto é de Julie Harris.






Por um instante de penumbra


Há sol demais por aqui. As sombras
expatriam-se dentro das coisas, sem uma
chance. A luz é cáustica,
esta luz de inquérito sob a qual o preso
não tem outra alternativa.
Você optaria por um mundo em claro-escuro,
mas tudo se revela (pior: se demonstra,
como num laboratório, como no corpo
aberto de uma cobaia) com enorme zelo e
não admite perfis, murmúrios, vislumbres.
Essa luz medonha que se esfrega
na sua cara – o quanto você não daria
por um instante de penumbra.
Por um segundo de indecisão.


***




poesia


Pense nela
como o dedo cavando a fresta onde
há ainda uma pequena chance,
algo semelhante à colher numa cela
de presídio investindo contra
o chão de barro: um túnel,
a vaga ideia de liberdade.


***



Blue Sunday


Não me lembro se foi on a blue Sunday,
como cantava Jim Morrison em nossos ouvidos.
Nem sei quantos atalhos tomamos, depois –
o herói de Truffaut é hoje um cara sério,
e nós, que o conhecemos
da época dos nossos quatre cents coups,
das nossas tardes sem nenhuma urgência
debruçados sobre o Rio, em meio aos turistas,
envelhecemos também. Sei que não disparam
os alarmes por nós: não somos nem mesmo
vaga ameaça. Mas nesse oco mal vedado
que ficou, sigo mendicante,
e carrego meias-luas sob os olhos
enquanto aguardo os tempos mais brandos
anunciados na canção.