sexta-feira, 8 de maio de 2015

MARIA DA CONCEIÇÃO PARANHOS (1944- )

Baiana de Salvador, a poetisa Maria da Conceição Paranhos publica desde o final dos anos 60, tanto em edições solo como participante de coletâneas. Em 1969, ela conquistou o prêmio Arthur Salles com seu livro de estréia em poesia,Chão Circular. Formada em letras, é doutora em teoria da literatura e também escreve ensaios e contos. Em 1967, ao lado de nomes como Myriam Fraga, Ruy Espinheira Filho, Antonio Brasileiro e Florisvaldo Mattos, participou da antologia Moderna Poesia Bahiana [sic], publicada pelas Edições Tempo Brasileiro. Para o crítico Carlos Machado: “Maria da Conceição desenvolve um lirismo centrado na reflexão sobre a vida, o passar do tempo os acidentes do amor, a insônia, a convivência difícil. Os poemas aqui selecionados pertencem ao livro As Esporas do Tempo, de 1996. 






ESCUTA



Ocorre que há uns lapsos na história,
há uns lapsos. Então vêm, videntes,
relatar histórias conhecidas
em noites longas de calor, insônia.
Ouvimos. Pacientemente.
Sob discursos jazem outras vozes.

Necessário cantar.
Animais se aninham ao nosso ânimo,
baixam seu brado à espera da canção.
E os leões de pedra dos portões
deixam rolar os globos que os sustentam.

Falamos línguas obscenas.
Não. Endureceu-se o ouvir.
Indefinidamente?
Afrontar a rija espada dos confrontos,
permitir soluções, se o peito arfa
curvado de rajadas imprudentes.
Se não se deixa a alma nesses lances
em que transidos vagamos dementes,
como afrontar as rugas, decifrar mensagens
(não correm ventos nas paisagens mortas,
largadas ao relento)?

Necessário é amar.
Primeiro e último tormento.


***



ILHA ILUMINADA


A vida surge rara,
ressurge das fenestras,
uma explosão contida,
um girassol sedento
imóvel na moldura.
Vigiam olhos d’água —
aberto azul turquesa,
piscina de desejo
a refletir o alto.

Cá dentro, hospital,
o choro dos nascidos.
Também meu ventre abriu-se,
menino, numa rosa.
De bruços na varanda,
medito e reencontro
um corpo tumescido,
a face repartida
nos ritos da espécie
e sua garra firme
e minha solidão.

Retomo minha voz:
embargo, engasgo,
tosse, difícil
redenção.

Suor, em fio, escorre
da sede de voar.
Janela tão pequena,
qual ilha iluminada,
afronta a escuridão
dos blocos, argamassa,
em fila, ameaça.

Eu grito, de paixão.



***




DESVELANDO O TEMPO


Ocultem os outros
a palavra tempo
em poemas curtos
com tal tema, centro.

A palavra tempo
deve ser usada
tantas vezes quanto
impuser nossa alma.

A palavra tempo
descerra suas portas
de argila e de vento,
suas linhas tortas.

Escrever o tempo
permite retornos:
ligeiros transtornos,
fugaz contratempo.

Porque tempo, tempo,
tempo passa, corre;
se você não dorme,
ele pára, lento.

Importa saber
com visão preclara
o que quer dizer
o tempo, que exala.


FELIPE D'OLIVEIRA (1891-1933)

Nasceu em Santa Maria da Boca do Monte, Rio Grande do Sul. Com Marcelo Gama, Zeferino Brasil, Álvaro Moreyra, Alceu Wamosy e outros, integrou o grupo simbolista do Rio Grande do Sul (o Simbolismo surge neste Estado em 1902, com via sacra, de Marcelo Gama). Embora tenha dialogando com o Modernismo, Felipe d'Oliveira, segundo Regina Zilberman, "permanece sobretudo um criador simbolista" que dá ênfase "à manifestação de uma temática marcada pela carência de conciliação existencial com a circunstância social e a vida pública, determinando a anulação destas em termos de representação literária". Algumas de suas principais obras poética são Vida extinta (1911) e Lanterna verde (1927).






O salto da morte


A melodia murmura
à porta do rancho
derrama uma alma
na paisagem viva
e a paisagem viva
inspira e expira
o ar fino da noite
pelos brônquios sonoros
da gaita monótona.

Os sapos calaram
e escutam, pensando
que a Mãe-d'Água dos sapos
está cantando perto
no brejo da charneca
entre os nenúfares.

Os bois sonolentos
descerrando lentos
os olhos tímidos
olham o campo longo
batido de luar
e pasmam de já ser
autora pois luz melodiosa
eles entendem o dia só
quando o sol acorda
a voz dos pássaros
adormecidos.

A gaita monótona
insufla um hálito
de pulmão humano
no ar que trescala
na noite clara.

As frondes das árvores
movem o gesto que marca
compasso como cabeças
atentas à orquestra.
As duas janelas ladeando
a porta do rancho
calmo têm a doçura
dos olhos ingênuos
e sorriem no ouro
das candeias que enchem
de ouro fluido
a sala caiada.

E da trepadeira
posta em mantilha
sobre o teto de sapé
sobe o cheiro morno
do jasmim branco
que a música faz
mais tépido
 como um perfume
sobre a pele.

A gaita monótona
alonga o perfume
na noite oblonga
e a claridade unânime
é luar e perfume
dissolvidos na música.

Súbito, um acorde
mais cheio, mais forte,
soprado em ofego
ressoa e se cala
até o fim do espaço,
no fim da paisagem.
Só o luar vazio
persiste sobre
a terra estática...

E, dentro do luar,
pênsil dos astros,
fica oscilando,
compassado,
o silêncio noturno,
como um trapézio
balançado de onde
rolou para morrer
no tombo trágico
o saltimbanco atônito.



***


ENCRUZILHAMENTO DE LINHAS


Núcleo de convergência no bojo da noite oval.
Lanterna Verde
(amêndoa fosforescente
dentro da casca carbonizada)

Longitudinal, centrífugo,
o trem racha em duas metades
a  espessura do escuro
e, cuspindo pela boca da chaminé
as estrelas inúteis à propulsão,
atira-se desenfreado
nos trilhos livres.

Mas se o maquinista fosse daltônico
a locomotiva teria parado.

        
***

 
O Epitáfio que não foi Gravado



Todos sentiram quando a morte entrou
com um frêmito apressado de retardatária.
A que tinha de morrer, — a que a esperava, —
fechou os olhos
fatigados de assistirem ao mal-entendido da vida.

Os que a choravam sabiam-na sem pecado,
consoladora dos aflitos,
boca de perdão e de indulgência,
corpo sem desejo,
voz sem amargor.

A que tinha de morrer fechou os olhos fatigados,
mas tranquilos...
Porque os que a choravam nunca saberiam
o rancor sem perdão de sua boca,
o desejo saciado de seu corpo,
o amargor de sua voz,
a sua angustia de arrastar até o fim a alma postiça que lhe
                                                                  [fizeram,
o seu cansaço imenso de abafar, secretos, na carne ansiosa,
a perfeição e o orgulho de pecar.

A que tinha de morrer fechou os olhos para sempre
e os que a choravam
nunca souberam de alguém que foi de todos junto ao leito
                            [à hora do exausto coração parar
o mais distante,
o mais imóvel,
o que não soluçou
o que não pôde erguer as pálpebras pesadas,
o que sentiu clamar no sangue o desespero de sobreviver,
o que estrangulou na garganta o grito dilacerado do solitário,
o que depós, sobre a serenidade da morte purificadora,
a redenção do silêncio,
como uma pedra votiva de sepulcro.








EMMANUEL SANTIAGO (1984 - )


Emmanuel Santiago é mineiro de São Lourenço. Poeta e crítico literário, é autor de Pavão bizarro (poesia) e A narração dificultosa (crítica).






Origami

a Tati A. Toumouchi



De papel de seda finíssimo,
fiz teu corpo: fibra a fibra
modelado na pétala, forma
de pura textura e volume.

Sobre a límpida e mínima
película, moldei teus seios
em torneios e volutas,
lívidos torvelinhos,

e os dedos se dedicaram
a cada minúcia sinuosa
na delicada dobradura do
sexo, desdobrando lábios
em abismos, labirintos.

Assim te concebo: nua
e toda nuances, criada
da lâmina de sal e espuma
do mar, como as ondas,

que se espiralam peroladas
durante a queda (tens
a idêntica consistência
de uma onda do mar).



***





Soneto filosofante com chavão de ouro



Bem já dizia o sábio Salomão:
é vaidade, vaidade das vaidades,
tudo que ao peito humano persuade
a tanto esforço inútil, nulo e vão,

pois, que de teu suor, não restarão
os frutos, nem o pó, sequer saudade;
tudo se perde e, tão logo se evade,
deixa para trás uma atroz lição:

nada fica, nem fama, nem dinheiro,
nem há, no mundo inteiro, o que persista;
os últimos igualam-se aos primeiros,

anulam-se as derrotas e as conquistas,
que, nesta vida, é tudo passageiro,
exceto o cobrador e o motorista.


***





Sonho recorrente
ou seis passos para um poema surrealista


Assim se sucedeu naquele sonho:
era noite quando uma jovem moça
perguntava-me as horas. Eu lhe disse:
“Não sei não, senhorita, mas é tarde;
não há ninguém na rua, não há nada”.
Ela, então, deu um tiro na cabeça.

Era noite de novo; na cabeça
a sensação de estar vivendo um sonho
como se caminhasse sobre o nada.
Chegou-se a mim aquela jovem moça:
“Morri, ressuscitei; é muito tarde.
Mate-me agora mesmo!”, ela me disse.

Era de noite quando alguém me disse:
“Veja só, estourei minha cabeça
e não posso emendá-la, pois é tarde!”,
e tudo se passava como num sonho.
Diante de mim, aquela jovem moça
estava morta; não dizia nada.

De noite outra vez, não se via nada.
Do escuro, soou uma voz que disse:
“Não se esqueça daquela jovem moça
que levou um balaço na cabeça!”.
Lembrei-me vagamente de algum sonho,
mas não pude retê-lo. Era tarde.

De noite. Muito escuro. Muito tarde.
Já não me lembro mais de quase nada
e vejo as coisas turvas, feito um sonho.
Só sei que certa vez alguém me disse:
“Cuidado! Não atire na cabeça!”.
No chão, jaz o cadáver de uma moça.

Percebo-me: sou uma jovem moça
andando por aí — tarde, bem tarde.
Estou morta e não tenho mais cabeça;
nas mãos, trago um revólver e mais nada.
“Não há ninguém na rua”, alguém me disse.
Não sei se sou real nem sei se sonho.

        É sempre o mesmo sonho, a mesma moça,
        algo que alguém me disse muito tarde,

        um tiro e só. Mais nada na cabeça.