sábado, 12 de janeiro de 2013

MARIANA IANELLI (1979 - )

Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de São Paulo. Poeta, mestre em Literatura e Crítica Literária, é autora dos livros Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer Silêncio (2005), Almádena (2007), Treva Alvorada (2010) e O amor e depois (2012) todos pela editora Iluminuras. Como resenhista, colabora atualmente para os Jornais O Globo – Prosa&Verso (RJ)  e Rascunho(PR). Escreveu crônicas para o site Vida Breve. Em 2008 recebeu o prêmio Fundação Bunge (antigo Moinho Santista) - Literatura, na categoria Juventude. Em 2011 obteve menção honrosa da Casa das Américas (Cuba) pelo livro Treva Alvorada. Confiram um pouco mais sobre esta poetisa em sua página na Web: http://www2.uol.com.br/marianaianelli






Neste Lugar


Nenhum traço de delicadeza,
Só palavras ávidas
E o tempo,
A devoração do tempo.

Um jardim entregue
Às chuvas e aos ventos.

O que para os cães
É febre de matança
E para um deus
Um dos seus inúmeros
Prazeres.

Caminhos de sangue
Onde reina o amor primeiro,
Morada de súbita
Ausência do medo.

Um despenhadeiro, o céu
E uma queda
Sem alívio de esquecimento.



***



Três vezes Cristo

O primeiro momento de Cristo
foi para mim o de um signo arcaico,
seu corpo fazendo cruz na madeira
pendurado no topo da classe
em cada aula
eu elevava os olhos para o homem
e não podia compreender coisa alguma.
Num segundo instante
a escola me esclareceu
por que a cruz
por que no alto da classe,
tive pena da cabeça coroada
doendo
caída para o peito,
tive pena mas não tive fé.
No terceiro desafio entre nós
percebi que a coroa era frouxa
que o sangue da testa estancava
que seus olhos se entreabriam para mim.
Cristo fazia o gesto de outras vezes,
o peito nu
desidratado, pedindo,
o pano debaixo cobrindo o resto.
Ele oferecia um abraço sensual,
nas cadeiras de aula
descobri qual meu homem,
paciente, faminto, ele.



***




Variações para morte

A gota ácida, o mármore em cima.
Coroa de espinhos.
Mais outra vez um chamado de carinho,
uma flor dedicada.
A ganância do escuro querer ser mais negro.
Ela, não a verdade,
mas cólera radiante na perda de tudo,
e do mundo novo.
Um abuso do vento, ou a furta-cor.
Furta azares e acertos.
Ir para o susto do inaudito,
a mais secreta gestação da vida.
Saudade para os outros.
Lentidão maior do gesto,
o tempo cedido de sobra.
Livre proveito do sono.
Guardar-se, sumir-se nas alturas de lá.
O corpo abastado, sublime.
Prazer ao meu descanso.
O lado da sombra sem lei,
sem vacilo, voz ou contradição.
Prazer, prazer.
O dia inflamado em mim.
Nada de necessário,
de providente, fugaz.
O nada, devagar.
Regato das delícias tão invisíveis.
Meu largo estremecimento pelos céus.
Langor inesperado surgindo
de qualquer pouca fé,
de qualquer reserva miserável.
Um amor desocupado, minúcia.
O corpo ficando lento, tão lento
como uma parte do infinito
fora de qualquer tempo.
Tanto prazer.
O mais, longe de mim, que será meu.
Intervalo de toda a canção,
e de todos os homens.
Minha isenção.
Um suave recuo para dentro,
e a partida desenvolta.
Sentir isto e aquilo, generosamente.
Iminência de não ser.
Ela, ambiciosa para vir,
mas com seus cuidados, sua sedução.
Ela, a melindrosa.
Bendita.
Noite resolvida em mim,
sua água densa de inverno.
Meu corpo atenuado,
dançarino... amiúde.

LÊDO IVO (1924-2012)


Poeta, romancista e ensaísta, Lêdo Ivo nasceu em Maceió, Alagoas, em 1924. Fez a sua primeira formação literária no Recife e, em 1943, transferiu-se para o Rio, onde continuou a atividade jornalística iniciado na província. Formado pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil, nunca advogou. Lêdo lvo estreou em 1944, com As Imaginações, livro de poemas a que se seguiram Ode e Elegia, Acontecimento do Soneto, Ode ao Crepúsculo, Cântico, Linguagem, Um Brasileiro em Paris, Magias, Estação Central, Finisterra, O Soldado Raso, A Noite Misteriosa, Calabar, Mar Oceano, Crepúsculo Civil e Curral de Peixe. Como poeta, foi distinguido com o Prêmio Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Cláudio de Souza, do Pen Club do Brasil, o Prêmio Jabuti, o Prêmio de Poesia da Fundação do Distrito Federal e o Prêmio Casimiro de Abreu. Lêdo Ivo pratica também a ficção e o ensaio. Ao seu romance de estréia, As Alianças (l947), foi conferido ao Prêmio Graça Aranha, e Ninho de Cobras conquistou o Prêmio Nacional Walmap de 1973. Os romances O Caminho Sem Aventura, O Sobrinho do General e A Morte do Brasil e o livro de contos Use a Passagem Subterrânea completam a sua produção como ficcionista. Entre seus ensaios, figuram O Universo Poético de Raul Pompéia, Poesia Observada, Teoria e Celebração, Ladrão de Flor, A Cidade e os Dias, A Ética da Aventura e A República da Desilusão. Como memorialista, publicou Confissões de um Poeta, que mereceu o Prêmio memória da Fundação Cultural do Distrito Federal e O Aluno Relapso. Seu romance Ninho de Cobras, foi lançado em inglês pela editora Directions, de Nova Iorque, sob o título Snakes' Nest, e pela Editora Peter Owen, de Londres e em dinamarquês (Slangboet) pela Editora Vindrose, de Copenhague. Em 1990, foi eleito o Intelectual do Ano pela União Brasileira de Escritores (Troféu Juca Pato). Ledo Ivo pertence à Academia Brasileira de Letras, para a qual foi eleito por unanimidade, e é Comendador da ordem do Rio Branco e oficial da ordem do Mérito Militar. Morreu em dezembro de 2012...






Acontecimento do Soneto


À doce sombra dos cancioneiros
em plena juventude encontro abrigo.
Estou farto do tempo, e não consigo
cantar solenemente os derradeiros

versos de minha vida, que os primeiros
foram cantados já, mas sem o antigo
acento de pureza ou de perigo
de eternos cantos, nunca passageiros.

Sôbolos rios que cantando vão
a lírica imortal do degredado
que, estando em Babilônia, quer Sião,

irei, levando uma mulher comigo,
e serei, mergulhado no passado,
cada vez mais moderno e mais antigo.



***



Soneto Presunçoso


Que forma luminosa me acompanha
quando, entre o lusco e o fusco, bebo a voz
do meu tempo perdido, e um rio banha
tudo o que caminhei da fonte à foz?

Dos homens desde o berço enfrento a sanha
que os difere da abelha e do albatroz.
Meu irmão, meu algoz! No perde-e-ganha
quem ganhou, quem perdeu, não fomos nós.

O mundo nada pesa. Atlas, sinto
a leveza dos astros nos meus ombros.
Minha alma desatenta é mais pesada.

Quer ganhe ou perca, sou verdade e minto.
Se pergunto, a resposta é dos assombros.
No sol a pino finjo a madrugada.



***



O Lago Habitado
(HAI-KAI)


Na água trêmula
freme a pálida
anêmona.

AFFONSO ROMANO DE SANT’ANNA (1937 - )

Affonso Romano de Sant’Anna é dono de uma produção diversificada e consistente, pensa o Brasil e a cultura do seu tempo, e se destaca como teórico, como poeta, como cronista, como professor, como administrador cultural e como jornalista. Com mais de 40 livros publicados, professor em diversas universidades brasileiras - UFMG, PUC/RJ, URFJ, UFF, no exterior lecionou nas universidades da California (UCLA), Koln (Alemanha), Aix-en-Provence (França). Seu talento foi confirmado pelo estímulo recebido de várias fundações internacionais como a Ford Foundation, Guggenheim, Gulbenkian e o DAAD da Alemanha, que lhe concederam bolsas de estudo e pesquisa em diversos países. Nascido em Belo Horizonte (1937), desde os anos 60 teve participação ativa nos movimentos que transformaram a poesia brasileira, interagindo com os grupos de vanguarda e construindo sua própria linguagem e trajetória. Data desta época sua participação nos movimentos políticos e sociais que marcaram o país. Embora jovem, seu nome já aparece nas principais publicações culturais do país. Por isto, como poeta e cronista foi considerado pela revista Imprensa, em 1990, como um dos dez jornalistas que mais influenciam a opinião de seu país. Nos anos 70, dirigindo o Departamento de Letras e Artes, PUC/RJ, estruturou a pós graduação em literatura brasileira do Brasil, considerada uma das melhores do país. Trouxe ao Brasil conferencistas estrangeiros como Michel Foucault e apesar das dificuldades impostas pela ditadura realizou uma série de encontros nacionais de professores, escritores e críticos literários além de promover a Expoesia - evento que reuniu 600 poetas num balanço da poesia brasileira. Durante sua gestão, pela primeira vez no país a chamada literatura infanto-juvenil passou a ser estudada na universidade e a ser tema de teses de pós-graduação. Foram também abertos cursos de Criação Literária com a presença de importantes escritores nacionais. Foi autor, dentro da universidade, de trabalhos pioneiros sobre música popular, como o livro Música popular e moderna poesia brasileira. Como jornalista trabalhou nos principais jornais e revistas do país: Jornal do Brasil, Senhor (colaborador), Veja (crítico), Isto É (Cronista), colaborador do jornal O Estado de São Paulo. Foi cronista da Manchete e do Jornal do Brasil . e está n'O Globo desde 1988. Seu trabalho à frente da Biblioteca Nacional possibilitou que o Brasil fosse o país-tema da Feira de Frankfurt (1994), o país-tema, na Feira de Bogotá (1995) e no Salão do Livro (Paris, 1998). Lançou a revista Poesia Sempre, de circulação internacional, tendo organizado números especiais sobre a América Latina, Portugal, Espanha, Itália, França, Alemanha. Foi Secretário Geral da Associação das Bibliotecas Nacionais Ibero-Americanas (1995-1996), que reúne 22 instituições desenvolvendo amplo programa de integração cultural no continente. Foi Presidente do Conselho do Centro Regional para o Fomento do Livro na América Latina e no Caribe-CERLALC), 1993-1995.  Como poeta participou do “International Writing Program”(1968-1969) em Iowa, USA, dedicado a jovens escritores de todo o mundo. Sua obra tem sido objeto de teses de mestrado e doutorado no Brasil e no exterior. Recebeu algumas das principais comendas brasileiras como Ordem Rio Branco, Medalha Tiradentes, Medalha da Inconfidência, Medalha Santos Dummont. É casado com a escritora Marina Colasanti (já publicada neste blog).




Epitáfio Para o Sec. XX


1.Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.
2.Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.

3.Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
-nux vômica.

4.Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado,empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.

5.Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.

6.Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.

7.Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas,sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro,
a custo aproximou.

8.Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.

9.Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno;
século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
-já vai tarde.

10. Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para o lugar nenhum.

11.Tende piedade de nós, ó vós
que em outros tempos nos julgais
da confortável galáxia
em que irônico estais.
Tende piedade de nós
-modernos medievais-
tende piedade como Villon
e Brecht por minha voz
de novo imploram. Piedade
dos que viveram neste século
per seculae seculorum.



***



Entrevista



Telefonam-me do jornal:
-Fale de amor-
diz o repórter,
como se falasse
do assunto mais banal.
-Do amor? -Me rio
informal. Mas
ele insiste:
-Fale-me de amor-
sem saber, displicente,
que essa palavra
é vendaval.

-Falar de amor?-Pondero:
o que está querendo, afinal?
Quer me expor
no circo da paixão
como treinado animal?

-Fala...-insiste o outro
-Qualquer coisa.
Como se o amor fosse
“qualquer coisa”
prá se embrulhar no jornal.

-Fale bem, fale mal,
uma coisa rapidinha
-ele insiste,como se ignorasse
que as feridas de amor
não se lavam com água e sal.

Ele perguntando
eu resistindo,
porque em matéria de amor
e de entrevista
qualquer palavra mal dita
é fatal.


***



Reflexivo


O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeu-se.