sábado, 30 de julho de 2016

A POESIA DO BRASIL EM EDIÇÃO ESPECIAL: "100 ANOS DE MANOEL DE BARROS"...


Cronologicamente vinculado à Geração de 45, mas formalmente ao Modernismo brasileiro, Manoel de Barros criou um universo próprio — subvertendo a sintaxe e criando construções que não respeitam as normas da língua padrão —, marcado, sobretudo, por neologismos e sinestesias, sendo, inclusive, comparado a Guimarães Rosa. Em 1986, o poeta Carlos Drummond de Andrade declarou que Manoel de Barros era o maior poeta brasileiro vivo. Antonio Houaiss, um dos mais importantes filólogos e críticos brasileiros escreveu: “A poesia de Manoel de Barros é de uma enorme racionalidade. Suas visões, oníricas num primeiro instante, logo se revelam muito reais, sem fugir a um substrato ético muito profundo. Tenho por sua obra a mais alta admiração e muito amor”. Os poemas publicados nesta seleção fazem parte do livro Manoel de Barros — Poesia Completa Bandeira, editora Leya. Em dezembro deste ano, Manoel de Barros faria 100, se vivo estivesse. Mas, como a obra transcende ao homem, eis mais alguns dos poemas deste grande poeta mato-grossense...








O apanhador de desperdícios


Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim um atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância de ser feliz por isso.
Meu quintal é maior do que o mundo.
Sou um apanhador de desperdícios:
Amo os restos
como as boas moscas.
Queria que a minha voz tivesse um formato
de canto.
Porque eu não sou da informática:
eu sou da invencionática.
Só uso a palavra para compor meus silêncios.

***


O fazedor de amanhecer


Sou leso em tratagens com máquina.
Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda a minha vida só engenhei
3 máquinas
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono.
Um fazedor de amanhecer
para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o
fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas pelo Platinado de Mandioca.
Fui aclamado de idiota pela maioria
das autoridades na entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre
em minha existência.


***


Aprendimentos

O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura
é o caminho que o homem percorre para se conhecer.
Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim
falou que só sabia que não sabia de nada.
Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas
di-menor com a natureza. Aprendeu que as folhas
das árvores servem para nos ensinar a cair sem
alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado
sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente
aprender o idioma que as rãs falam com as águas
e ia conversar com as rãs.
E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos
do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de
ave. Por isso ele podia conhecer todos os pássaros
do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara
nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver,
no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar.
Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens.
Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno
grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles —
esse pessoal.
Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova.
Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam
que o fascínio poético vem das raízes da fala.
Sócrates falava que as expressões mais eróticas
são donzelas. E que a Beleza se explica melhor
por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei
sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.