quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

HILDA HILST (1930-2004)

Hilda Hilst foi a única filha do fazendeiro de café, jornalista, poeta e ensaísta Apolônio de Almeida Prado Hilst, filho de Eduardo Hilst, imigrante originário da Alsácia-Lorena, e de Maria do Carmo Ferraz de Almeida Prado. Sua mãe, Bedecilda Vaz Cardoso, era filha de imigrantes portugueses. Em 1932, seus pais se separaram. Em plena Revolução Constitucionalista, Bedecilda mudou-se para Santos, com Hilda e Ruy Vaz Cardoso, filho do seu primeiro casamento. Em 1935, Apolônio foi diagnosticado como paranóico esquizofrênico.

Em 1937, Hilda ingressou como aluna interna do Colégio Santa Marcelina, em São Paulo, onde cursou o primário e o ginasial, com desempenho considerado brilhante. Nesse ano, a mãe lhe revelou a doença de seu pai. Em 1945, iniciou o curso secundário no Instituto Presbiteriano Mackenzie, onde permaneceu até a conclusão do curso. Em 1948, entrou para a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco). Seu primeiro livro, Presságio, foi publicado em 1950. A partir de 1951, ano em que publicou seu segundo livro de poesia, Balada de Alzira, foi nomeada curadora do pai. Concluiu o curso de Direito em 1952. Na universidade, conheceu sua melhor amiga, a escritora Lygia Fagundes Telles. Em 1966, mudou-se para a Casa do Sol, uma chácara próxima a Campinas, onde hospedou diversos escritores e artistas por vários anos. Ali dedicou todo seu tempo à criação literária.

Hilda Hilst escreveu por quase cinqüenta anos, tendo sido agraciada com os mais importantes prêmios literários do Brasil. Em 1962, recebeu o Prêmio PEN Clube de São Paulo, por Sete Cantos do Poeta para o Anjo (Massao Ohno Editor, 1962). Mudou-se para a Casa do Sol, construída na fazenda, onde passou a viver com o escultor Dante Casarini, em 1966. Em setembro do mesmo ano, morreu seu pai. Dois anos depois, Hilda casou-se com Dante. Em 1969, a peça O Verdugo arrebatou o Prêmio Anchieta, um dos mais importantes do país na época. No mesmo ano, a cantata Pequenos Funerais Cantantes, composta por seu primo, o compositor Almeida Prado, sobre o poema homônimo de Hilda, dedicado ao poeta português Carlos Maria Araújo, conquistou o primeiro prêmio do I Festival de Música da Guanabara.

A Associação Paulista de Críticos de Arte (Prêmio APCA) considerou Ficções (Edições Quíron, 1977) o melhor livro do ano. Em 1981, Hilda Hilst recebeu o Grande Prêmio da Crítica para o Conjunto da Obra, pela mesma Associação Paulista de Críticos de Arte. Em 1984, a Câmara Brasileira do Livro concedeu o Prêmio Jabuti, idealizado por Edgard Cavalheiro (1959) a Cantares de Perda e Predileção (Massao Ohno - M. Lydia Pires e Albuquerque editores, 1983), e, no ano seguinte, a mesma obra recebeu o Prêmio Cassiano Ricardo (Clube de Poesia de São Paulo). Rútilo Nada, publicado em 1993, pela editora Pontes, levou o Prêmio Jabuti como melhor conto. E, finalmente, em 9 de agosto de 2002, foi premiada na 47ª edição do Prêmio Moinho Santista na categoria Poesia.

A escritora ainda participou, a partir de 1982, do Programa do Artista Residente, da Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.

Assuntos tidos como socialmente controversos, por exemplo, o lesbianismo, a homossexualidade e a pedofilia, foram temas abordados pela autora em suas obras. No entanto, conforme a própria escritora confessou em sua entrevista ao Cadernos de Literatura Brasileira, seu trabalho sempre buscou, essencialmente, retratar a difícil relação entre Deus e o homem.

Muitas de suas obras se esgotaram e não eram encontradas até que a Editora Globo republicou vários títulos. Após seu falecimento o amigo Mora Fuentes liderou a criação do Instituto Hilda Hilst (http://www.hildahilst.com.br/). O IHH tem como primeira missão a manutenção da Casa do Sol, seu acervo e o espírito de ser um porto seguro para a criação intelectual.



QUE ESTE AMOR NÃO ME CEGUE NEM ME SIGA...

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.

Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.

Que este amor só me veja de partida.


***



CHAMAMENTOS AO AMIGO


Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se a água
Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.


***


PRELÚDIOS-INTENSOS
PARA OS DESMEMORIADOS DO AMOR

I

Toma-me. A tua boca de linho sobre a minha boca
Austera. Toma-me AGORA, ANTES
Antes que a carnadura se desfaça em sangue, antes
Da morte, amor, da minha morte, toma-me
Crava a tua mão, respira meu sopro, deglute
Em cadência minha escura agonia.

Tempo do corpo este tempo, da fome
Do de dentro. Corpo se conhecendo, lento,
Um sol de diamante alimentando o ventre,
O leite da tua carne, a minha
Fugidia.
E sobre nós este tempo futuro urdindo
Urdindo a grande teia. Sobre nós a vida
A vida se derramando. Cíclica. Escorrendo.

Te descobres vivo sob um jogo novo.
Te ordenas. E eu deliquescida: amor, amor,
Antes do muro, antes da terra, devo
Devo gritar a minha palavra, uma encantada
Ilharga
Na cálida textura de um rochedo. Devo gritar
Digo para mim mesma. Mas ao teu lado me estendo
Imensa. De púrpura. De prata. De delicadeza.

II

Tateio. A fronte. O braço. O ombro.
O fundo sortilégio da omoplata.
Matéria-menina a tua fronte e eu
Madurez, ausência nos teus claros
Guardados.

Ai, ai de mim. Enquanto caminhas
Em lúcida altivez, eu já sou o passado.
Esta fronte que é minha, prodigiosa
De núpcias e caminho
É tão diversa da tua fronte descuidada.

Tateio. E a um só tempo vivo
E vou morrendo. Entre terra e água
Meu existir anfíbio. Passeia
Sobre mim, amor, e colhe o que me resta:
Noturno girassol. Rama secreta.

ÉRICO NOGUEIRA (1979- )

Érico Nogueira nasceu em Bragança Paulista em 1979. Poeta e estudioso da Antigüidade greco-latina, ganhou o “Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura” de 2008 com O Livro de Scardanelli e é, também, autor de Dois, com o qual foi um dos finalistas do prêmio Jabuti de 2011. sua primeira coletânea de poemas. Atualmente vive em São Paulo, onde trabalha como tradutor e professor de línguas e literaturas clássicas e escreve para a revista Dicta&Contradicta.

 

 

 

 

ALTIVEZ

Há quem escolha a vida, e de que morte
a vida morra, e onde e quando quase;
há quem não tenha boa nem má fase
porque não liga: aceita a sua sorte.

Se a luz arder ou não arder, é tudo igual;
circula o sangue, se oxigena o cérebro,
e a mão escreve o que hão de comentar no féretro,
quer faça chuva então, ou faça sol.

O que se foi, se foi – o sol luzido
e o vento e o raio e o tronco ao meio dividido;
a vida é um quase nada, é quase um sopro: é barro
que, modelado ou não, é sujo e caro.


*** 

AS PÊRAS DE DIANA

As pêras que colhi
da vaguidão de insossos minerais,
pensei mas não comi;
então não pude mais
que olhá-las e pensar comê-las mais.

As coloquei num cesto
para que mão alguma as machucasse;
e me era indigesto
notar, se examinasse,
que tinham marcas como se apanhassem.

À noite, famulento,
tomei e simplesmente as pus na boca;
que grande o meu contento
mesmo onde a carne é pouca;
pensar e não comer, que idéia louca.


***

 

IN DÜRFTIGER ZEIT

Havia um tempo em que eu andava triste,
como lagarto em rocha estatelado:
trazia mais que o mundo sobre o rabo,
o que existe, e o que não existe.
Fui passear, a ver se me esquecia
do que pesava assim sobre meus “ombros”;
ora na merda, ora nos escombros,
fuçava tudo e nada recolhia.
“Outro soneto, então, meu caro Érico?
você só presta par tais bobagens?”
- me disse alguém (se gente) em tom pilhérico,
que vinha com meu rosto nas miragens.
A disciplina do deserto é esta:
não dá de graça, e o que te der não presta.


GUILHERME DE ALMEIDA (1890-1969)

Guilherme de Andrade e Almeida (Campinas, 24 de julho de 1890 — São Paulo, 11 de julho de 1969) foi advogado, jornalista, crítico de cinema, poeta, ensaísta e tradutor brasileiro. Entre outras realizações, foi um dos maiores responsáveis pela divulgação do haikai no Brasil. Combatente na Revolução Constitucionalista de 1932. Sua obra maior de amor a São Paulo foi seu poema Nossa Bandeira. Ainda, o poema Moeda paulista Foi presidente da Comissão Comemorativa do Quarto Centenário da cidade de São Paulo. Guilherme de Almeida pertenceu só episodicamente ao movimento de 1922. Não bastasse sua produção poética, suas atitudes comprovam essa afirmação: foi o primeiro "Modernista" a entrar para a Academia Brasileira de Letras (1930). Em 1958, foi coroado o quarto "Príncipe dos Poetas Brasileiros" (depois de Bilac, Alberto de Oliveira e Olegário Mariano). Encontra-se sepultado no Mausoléu do Soldado Constitucionalista, na capital de São Paulo.




SONETO

Quando a chuva cessava e um vento fino
franzia a tarde tímida e lavada,
eu saía a brincar, pela calçada,
nos meus tempos felizes de menino.

Fazia, de papel, toda uma armada;
e, estendendo meu braço pequenino,
eu soltava os barquinhos, sem destino,
ao longo das sarjetas, na enxurrada...

Fiquei moço, e hoje sei, pensando neles,
que não são barcos de ouro os meus ideais:
são feitos de papel como aqueles,

perfeitamente, exatamente iguais...
— Que os meus barquinhos, lá se foram eles!
Foram-se embora e não voltaram mais!


***


MORMAÇO

Calor. E as ventarolas das palmeiras
e os leques das bananeiras
abanam devagar
inutilmente na luz perpendicular.
Todas as coisas são mais reais, são mais humanas:
não há borboletas azuis nem rolas líricas.
Apenas as taturanas
escorrem quase líquidas
na relva que estala como um esmalte.
E longe uma última romântica
— uma araponga metálica — bate
o bico de bronze na atmosfera timpânica.


***



FILOSOFIA
(
HAIKAI)

Lutar? Para quê?
De que vive a rosa? Em que
pensa? Faz o quê?




quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

SEBASTIÃO DA ROCHA PITA (1660-1738)

Nascido no ano de 1660 na Bahia, hoje cidade de Salvador, Sebastião da Rocha Pita foi um importante historiador e poeta do século XVII. É autor de, dentre outras, uma importante obra intitulada História da América Portuguesa (1730), produzida em um período em que a capacidade de contar a História de Portugal e do império luso-brasileiro compunham um quadro de preocupações centrais de um reino atribulado em legitimar-se frente a outras nações - onde o domínio da história e sua forma de escrita como iniciativa institucional congregaria em si essa função. Como um historiador de prestígio, compunha a ordem de letrados na Academia Real de História Portuguesa (1720-1736), ocupando o cargo de acadêmico supranumerário. No cenário brasileiro, foi membro e um dos fundadores da Academia Brasílica dos Esquecidos (1724) participando ativamente como poeta e historiador nas atividades realizadas nessa congregação, que pode ser concebida como um local privilegiado para se pensar e formular a história da América Portuguesa, em um período no qual “ o movimento academicista ajudou a desencadear uma nova percepção sobre o estatuto político do território colonial, estimulando assim, a reflexão sobre a natureza dos laços que prendiam a América ao Reino: amarras simultaneamente jurídicas, familiares, lingüísticas, econômicas e culturais. Formado na Escola de Jesuítas da Bahia e mestre em Artes, o nome de Rocha Pita figura na lista de nomes de brasileiros formados na Universidade de Coimbra elaborada por Francisco Morais, tendo ido aos 16 anos. A formação em Portugal era um costume daqueles que tinham um prestígio social na colônia e que compunham assim, o quadro de letrados brasileiros. Ostentou ainda o título de coronel do regimento privilegiado de ordenanças, foi fidalgo da casa real, cavaleiro da ordem de Cristo e vereador em Salvador. Pai de três filhos, com Ana Cavalcanti, morre em 1738, na cidade de Cachoeira, onde desde o casamento fixou residência.






SONETO
                                                    

O desvelo maior tem aplicado
Fílis para esquecer um bem perdido,
Mas como pode o bem ser esquecido,
Quando o próprio desvelo o faz lembrado?

Como pode o discurso desvelado
Ver-se do que imagina dissuadido?
Lembrar-se de esquecer traz no sentido,
E vem o esquecimento a ser cuidado.

Se da perda o descuido não tomasse
Por empresa, essa mágoa que padece
Fora possível, que lhe não lembrasse.

Mas a memória em Fílis permanece,
Pois se o descuido de cuidado nasce,
Do que quer esquecer se não esquece. 


***



SONETO JOCOSO 

Pondero a emudecida formosura
De Fília, sem temer que impertinente
Possa, no meu soneto, meter dente,
Pois carece de toda a dentadura.

Se, por cobrir a falta, esta escultura
Tão muda está que não parece gente,
Estátua de jardim será somente,
Se de pano de raz não for figura.

O Senhor Secretário quer que a creia
Bela sem dentes; eu lho não concedo:
Desdentada é pior do que ser feia,

E em silêncio só pode causar medo,
Ser relógio do sol para uma aldeia,
Para um povo estafermo do segredo.


***



SONETO


A ver do Sol o novo nascimento,
a nova Lua veio prontamente
um e outro Planeta no Ocidente
trazendo o seu efeito, e movimento,

o Sol em raios grande luzimento,
a Lua em águas copiosa enchente
assistindo a Academia mais ciente,
e concorrendo a dar-lhe o fundamento.

Para encher ao Congresso de favores
mais se expende um Planeta, outro mais arde,
o dia repartindo em seus primores.

Ambos fazem do seu obséquio Alarde
um em cristais, e outro em resplendores,
a Lua de manhã, e o Sol de tarde. 
  




EMÍLIO DE MENEZES (1866-1918)

Emílio Nunes Correia de Meneses (Curitiba, 4 de julho de 1866 — Rio de Janeiro, 6 de junho de 1918); jornalista e poeta brasileiro, imortal da Academia Brasileira de Letras e mestre dos soentos satíricos. 

Era filho de Emílio Nunes Correia de Meneses e de Maria Emília Correia de Meneses, único homem dentre oito irmãs. Seu pai era também um poeta. Faz seus estudos iniciais com João Batista Brandão Proença, e depois no Instituto Paranaense. Sem ser de família abastada, trabalha na farmácia de um cunhado e, ainda com dezoito anos, muda-se para o Rio de Janeiro, deixando em Curitiba a marca de uma conduta já distoante ao formalismo vigente: nas roupas, no falar e nos costumes.

Boêmio, na capital do país encontra solo fértil para destilar sua fértil imaginação, satírica como poucos. A amizade com intelectuais, entretanto, fez com que tivesse seu nome afastado do grupo inicial que fundara a Academia. Torna-se jornalista e, por intercessão do escritor Nestor Vítor, trabalha com o Comendador Coruja, afamado educador. Em 1888 casa-se com uma filha deste, Maria Carlota Coruja, com quem tem no ano seguinte seu filho, Plauto Sebastião.

Mas Emílio não estava fadado para a vida doméstica: neste mesmo ano separa-se da esposa, mantendo um romance com Rafaelina de Barros.

Autor de veros mordazes, eivados de críticas das quais não escapavam os políticos da época, mestre dos sonetos, Emílio de Meneses é portador de uma tradição - iniciada com o Brasil, em Gregório de Matos. Para Glauco Mattoso, o poeta paranaense é o principal poeta satírico brasileiro após Gregório de Matos; foi o maior satírico do soneto brasileiro. Apelidado "rei do trocadilho" e "o último boêmio", ficou também famoso por epigramas em trova. Boemia e irreverência foram, segundo consta, o motivo da má vontade de Machado quanto à admissão do gordo na Academia.

Tendo sido nomeado para o recenseamento, como escriturário do Departamento da Inspetoria Geral de Terras e Colonização, em 1890, Emílio aposta na especulação da falácia econõmica do Encilhamento, criada pelo Ministro da Fazenda Ruy Barbosa: como muitos, fez rápida fortuna, esbanja e, terminada a farsa, como todos os outros investidores, vai à falência. Não muda, entretanto, seus hábitos. Continua o mesmo boêmio de sempre, a povoar os jornais da época com suas percucientes anedotas.





A
ROMÃ

Mal se confrange na haste a corola sangrenta
e o punício vigor das pétalas descora.
Já no ovário fecundo e intumescido, aumenta
o escrínio em que retém os seus tesouros. Flora!

E ei-la exsurge a Romã. Fruta excelsa e opulenta
que de acesos rubis os lóculos colora
e à casca orbicular, áurea e eritrina ostenta
o ouro do entardecer e o paunásio da aurora!

Fruta heráldica e real, em si, traz à coroa
que o cálice da flor lhe pôs com o mesmo afago
com que a Mãe Natureza os seres galardoa!

Porém a forma hostil, de arremesso e de estrago,
lembra um dardo mortal que o espaço cruza e atroa
nos prélios ancestrais de Roma e de Cartago!


***


UM PAULISTA NARCISISTA a Amadeu Amaral


Dizem que, às vezes, quer se achar bonito,
mas, nem sendo Amadeu e sendo amado,
mas muito amado mesmo, eu não hesito:
se não é feio é bem desengraçado.

Entretanto se o vejo (isto é esquisito)
através de um soneto burilado,
e mais que belo, afirmo em alto grito,
é o próprio Apolo que lhe fica ao lado.

Mais comprido que a universal história,
este Leconte, com seu ar caipira,
me deixa uma impressão nada ilusória.

Quando ele ao alto a inspiração atira,
com a cabeça a topar no céu da glória,
é um guindaste a guindar a própria lira.
                                                                        
***


IMPRESSÕES DE VIAGEM

(a Monna Delza, que declarou que no Rio
as portas e janelas das casasnunca são fechadas)


Como é bela a mentira quando nasce
de uma formosa boca feminina!
Nem nos faz o rubor subir à face,
tanto é discreta, delicada e fina.

Se o que a Monna declara, declarasse
o Belisário Távora, imagina
o leitor que esta coisa assim ficasse,
sem protestos da crítica ferina?

À Delza agradecemos a carícia
das suas doces impressões de viagem,
nas quais não há nem sombras de malícia.

Mas cá no seio da camaradagem,
se assim fosse, que glória a da polícia
e que vergonha para a gatunagem!


LUÍS PIMENTEL (1950- )

Luís Pimentel nasceu no sertão baiano, entre Itiúba e Gavião, em 1953. Jornalista e escritor, é carioca por adoção, tendo trabalhado em diversas redações de jornais e revistas do Rio de Janeiro. Autor de duas dezenas de livros publicados, entre obras infanto-juvenis, de contos, de poesia, de textos de humor e sobre fatos e personagens da música brasileira, como "As miudezas da velha", Prêmio Jorge de Lima, 1990, "O calcanhar da memória", 2004, e "Grande homem mais ou menos", Prêmio Cruz e Sousa. Outros livros do autor: "Todas as cores do mar", 2007; "Luiz Gonzaga", 2007; "Um cometa cravado em tuas coxas", 2007; "Contos para ler ouvindo música", 2005; "Wilson Batista"; "Entre sem bater: O humor na imprensa brasileira: do Barão de Itararé ao Pasquim 21" e "Piadas para sacanear corintiano: Para alegria de palmeirense"..





Colheita

Acredito na floresta e na pradaria e na noite dentro da qual o milho cresce.
H. D. Thoreau



Porque nada é em vão
– a foice, o pão, a bala perdida –
estamos cada dia mais estéreis,
espantalhos no campo, expostos
às bicadas e aos ferrões.
Da unha que arrebenta
ao dente amolecido,
nenhum saldo positivo
é creditado aos cabelos
que perderam a cor.

Porque a vida é curta, sonsa e cínica
e é incauto o amor,
toda nudez será aproveitada
em benefício impróprio.
O estômago seguirá doendo,
a mãe gemendo reminiscências
contra Deus e suas relíquias,
os amigos morrendo distraidamente
como se ainda jogássemos bolas de gude.
O patrão, a mulher e o filho,
todos pensando que me têm,
enquanto os sentinelas no hospício
não pensam em nada,
apenas esperam que eu me acalme
para debulharem, grão por grão,
até minha última espiga.

***



Neblina e mormaço

O velho está quieto e cansado.
Feito um animal, um burro de carga.

Está triste, está só e mal-amado.
Ninguém lhe redime, nada o absolve.

Nos olhos do velho, uma chuva fina.
No peito, neblina. Mormaço nas costas.

O velho não deve, não teme, não foge.
Mas identifica o calor nas veias:

como um descompasso, uma coisa feia.
O velho já teve a vida no braço.

Quando a luz se apaga, sonha dias antigos.
Uma calça curta, uma estrada inteira,

um carro de bois, certa pasmaceira,
um pai que era duro, um cão que era meigo,

um calor-castigo, porcos e galinhas,
enxada no ombro, espinhos na pele,

um cabrito enjeitado, que o velho-menino
tratava com zelo – mamadeira e carinho no pêlo.

Quando o dia se acende, vem tudo de novo:
levanta em silêncio, caminha com modos,

se lava com métodos, se enxuga com calma,
se arrasta sem júbilos ao café com leite,

ao remédio certo, ao jornal sem cura,
ao final da fila, ao sinal da espera.

Vai à janela e contempla o céu, ainda o mesmo.
Não faz qualquer pedido, qualquer promessa.


***


Enigma

Para onde fogem os pássaros
em sua agonia?
Quando falham as asas,
onde eles as escondem?

Como enfrentam a morte
quando se anuncia?

Será que se escondem,
como os elefantes,
nos montes longínquos?

Onde eles se exilam?
Onde se desnudam?
Como se aniquilam?

Que bater de assas
diz que o pássaro em chamas,
tem o bico trêmulo?

Como se despena?
Despenca do galho?
Vira luz efêmera?

O pássaro em pânico
não lamenta a sorte.
Não celebra a morte,
pois só sabe a vida.

Qual será o canto
de sua despedida?



quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

EMILIANO PERNETA (1866-1921)

David Emiliano Perneta nasceu e morreu em Curitiba. Formou-se advogado pela Universidade de São Paulo. Além de ter sido jornalista, advogado e professor de português, Perneta foi um dos fundadores do clube republicano de Curitiba e publicou, em livros, jornais e revistas, poesia e prosa poética simbolista. Sua obra poética inclui Ilusão (1911), Pena de Talião (1914) e os póstumos Setembro(1934) e Poesias Completas (1945). Incorporando ao sobrenome um apelido de seu pai, já nisso revela a excentricidade que o caracterizou, desde o traje até o ultraje ao Sistema: republicano no Império, abolicionista na escravocracia, simbolista como reação ao parnasianismo que o formara. Como demorou para reunir sua obra, passou despercebido da crítica, embora fosse influente entre os paranaenses. Metaforicamente esquisitos, seus sonetos são conservadores na forma e às vezes naquele medo da modernidade, típico dos simbolistas quando se refugiavam num passadismo, menos que decadentista, decadista, isto é, de décadas em vez de séculos.







VENCIDOS

Nós ficaremos, como os menestréis da rua,
Uns infames reais, mendigos por incúria,
Agoureiros da Treva, adivinhos da Lua,
Desferindo ao luar cantigas de penúria?

Nossa cantiga irá conduzir-nos à tua
Maldição, ó Roland?... E, mortos pela injúria,
Mortos, bem mortos, e, mudos, a fronte nua,
Dormiremos ouvindo uma estranha lamúria?

Seja. Os grandes um dia hão de cair de bruço...
Hão de os grandes rolar dos palácios infetos!
E glória à fome dos vermes concupiscentes!

Embora, nós também, nós, num rouco soluço,
Corda a corda, o violão dos nervos inquietos
Partamos! inquietando as estrelas dormentes!




***

AO CAIR DA TARDE

Agora nada mais. Tudo silêncio. Tudo,
Esses claros jardins com flores de giesta,
Esse parque real, esse palácio em festa,
Dormindo à sombra de um silêncio surdo e mudo...

Nem rosas, nem luar, nem damas... Não me iludo,
A mocidade aí vem, que ruge e que protesta,
Invasora brutal. E a nós que mais nos resta,
Senão ceder-lhe a espada e o manto de veludo?

Sim, que nos resta mais? Já não fulge e não arde
O sol! E no coril negro deste abandono,
Eu sinto o coração tremer como um covarde!

Para que mais viver, folhas tristes do outono?
Cerra-me os olhos, pois, Senhor. É muito tarde.
São horas de dormir o derradeiro sono.





***

DOR

Ao Andrade Muricy




Noite. O céu, como um peixe, o turbilhão desova
De estrelas e fulgir. Desponta a lua nova.

Um silêncio espectral, um silêncio profundo
Dentro de uma mortalha imensa envolve o mundo

Humilde, no meu canto, ao pé dessa janela,
Pensava, oh! Solidão, como tu eras bela,

Quando do seio nu, do aveludado seio
Da noite, que baixou, a Dor sombria veio.

Toda de preto. Traz uma mantilha rica;
E por onde ela passa, o ar se purifica.

De invisível caçoila o incenso trescala,
E o fumo sobe, ondeia, invade toda a sala.

Ao vê-la aparecer, tudo se transfigura,
Como que resplandece a própria noite escura.

É a claridade em flor da lua, quando nasce,
São horas de sofrer. Que a dor me despedace.

Que se feche em redor todo o vasto horizonte,
E eu ponha a mão no rosto, e curve triste a fonte.

Que ela me leve, sem que eu saiba onde me leva,
Que me cubra de horror, e me vista de treva. 



EDSON BUENO DE CAMARGO (1962- )

Edson Bueno de Camargo nasceu em Santo André - SP, em 24 de julho de 1962, mora em Mauá – SP. Publicou: Cabalísticos (Coleção Orpheu –Editora Multifoco – Rio de Janeiro – 2010); De Lembranças & Fórmulas Mágicas (Edições Tigre Azul/ FAC Mauá -2007); O Mapa do Abismo e Outros Poemas ( Edições Tigre Azul/ FAC Mauá -2006),  Poemas do Século Passado (1982-2000) (Edição de autor - Mauá – 2002); Cortinas (edição artesanal), com poesias suas e de Cecília A. Bedeschi - Mauá - 1981; foi publicado esparsamente em algumas antologias poéticas, jornais e revistas literárias, no papel e na Internet.  Recebeu entre outras, as premiações: 1º lugar nacional - 6º CONCURSO LITERÁRIO DE SUZANO – Categoria Poesia - 2010 1º lugar nacional - 4º CONCURSO LITERÁRIO DE SUZANO – Categoria Poesia - 2008; 1º lugar do PRÊMIO OFF-FLIP DE LITERATURA – 2006 – categoria Poesia; 2º Classificado- X PRÊMIO ESCRIBA DE POESIA – 2008; 2º lugar com o poema “serpentário” e Menção Honrosa com o poema “esquisito” -  3º CONCURSO NACIONAL DE POESIA - COLATINA 2007 PRÊMIO “FILOGÔNIO BARBOSA”.  Participa do grupo poético/ literário Taba de Corumbê da cidade de Mauá –SP.




dívida com o mar


quando o mar
devolver seus mortos sem sepulcro
estarei na praia
a esperar meus amigos

abraçarei seus ossos mareados
que lavarei com cuidado e zelo
e lhes darei o devido enterro
cantarei canções de ninar cadáveres e esqueletos
e lembrarei mais tarde
ao som de tambor
ao redor de uma grande fogueira
do dia em que fiquei para trás esperando

pois que eu tenho uma dívida com o mar
assim como ele me deve
por isso não consigo mais andar sobre a s águas
nem posso ter pedras dentro da cabeça
ao modo dos peixes
nem dormir agarrado a remos
no fundo de barcos de longo calado

penso nas marcas dos pés sobre a areia
e no dia que sai da casa de meus pais
para não morrer no mar

sei que lá estão meus companheiros
em paciente espera do dia
que o mar nos devolva todos a vida


***



tátil e cego


enquanto corro
os dedos em tuas costas elétricas

minhas narinas
devoram tua pele e pelos
naquilo que são fogo
e cada contorno volátil
é abrigo e assento para meus olhos

tátil e cego é o amor
nos abismos florestais
ou ralas pradarias
pois tudo é triangulo e ravina

posso lamber teu cheiro esta noite
e nas outras e outras
e as gotas
da chuva de pentes para cabelos
e pedestais e pedrarias

estar em ti
é tudo que posso e quero.


***


VERMELHA

a tarde cai
abrupta
e vermelha

nos subterrâneos
e nos subúrbios
em seus muros
necromantes desajeitados
geram um mundo deformado


LUCILA NOGUEIRA (1950- )

Lucila Nogueira é poeta, ensaísta, contista,crítica e tradutora. Tem vinte e dois livros de poesia publicados, a saber: Almenara (1979), Peito Aberto (1983), Quasar (1987), A Dama de Alicante (1990), Livro do Desencanto (1991), Ainadamar (1996), Ilaiana (1997-2000 2ª.ed.), Zinganares (1998 – Lisboa), Imilce (1999-2000 2ª.ed.), Amaya (2001), A Quarta Forma do delírio (2002 - 1ª. 2ª.ed.), Refletores (2002), Bastidores (2002), Desespero Blue (2003), Estocolmo (2004-2005 2ª.ed.), Mar Camoniano (2005), Saudade de Inês de Castro (2005) , Poesia em Medellin (2006), Poesia em Caracas(2007), Poesia em Cuba (2007), Tabasco (2009) e Casta Maladiva (2009).

Seu livro de estréia, Almenara, obteve o prêmio de poesia Manuel Bandeira do Governo do Estado de Pernambuco, no ano de 1978 – essa premiação lhe foi novamente concedida pelo livro Quasar, em 1986, ano do centenário do poeta modernista pernambucano. Ilaiana teve lançamento no centro de Estudos Brasileiros de Barcelona, em 1998; Zinganares, na Embaixada do Brasil em Lisboa, também em março desse ano.

Sobre este último, editado em Portugal, foi defendida a dissertação “A moderna lírica mitológica de Lucila Nogueira”, de autoria de Adriane Ester Hoffmann, na PUC do Rio Grande do Sul, sob orientação da professora Lígia Militz(Edições Livro-rápido,2007). Imilce encontra-se traduzido para o francês por Claire Benedetti (tradutora de Florbela Espanca, Teixeira de Pascoaes e Antero de Quental), aguardando publicação. Lucila foi escritora-residente na Casa do Escritor Estrangeiro de Saint-Nazaire em dezembro de 1999; o livro que lá produziu nesse período, A Quarta Forma do Delírio, estava sendo traduzindo por Claire Cayron (tradutora de Miguel Torga, Sophia de Melo Brayner, Harry Laus e Caio Fernando Abreu), ao tempo de súbita desaparição da tradutora.

É professora da Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Universidade Federal de Pernambuco, onde vem ensinando disciplinas como Teoria da Poesia,Poesia da Experiência e Performance,Teoria da Ficção, Ideologia e Literatura, Literaturas de Expressão Portuguesa do Século XX,Literatura Hispanoamericana, teoria da crítica genética e psicanalítica,teoria do pacto autobiográfico, ; na Graduação ensina Literatura Portuguesa (Cadeira do seu Concurso Público), Literatura Brasileira, Teoria da Literatura e Língua Portuguesa (Português Instrumental).Tem participado de várias Bancas de pós-graduação e concursos públicos em outros Estados , presença constante em congressos e colóquios, abordando autores desde o período medieval à atualidade.

Dirige o Seminário de Estudos Literários Contemporâneos em sua instituição de ensino. Foi Curadora Literária da Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas - FLIPORTO nos anos 2007 e 2008. Chefiou o Departamento de Letras de 1998 a 1999. Membro da Academia Pernambucana de Letras desde 1992 e sócia – correspondente da Academia Brasileira de Filologia, sediada no Rio de Janeiro. Foi Diretora Cultural e de Intercâmbio Internacional do Gabinete Português de Leitura do Recife, onde editou por cinco anos a Revista de Lusofonia Encontro, sobre a qual promoveu lançamentos nas Universidades de Évora, Porto e Complutense de Madri, com apresentação dos professores Francisco Soares, Arnaldo Saraiva e Antonio Maura, respectivamente.






MAS NÃO DEMORES TANTO




O corpo - dizem - já não será mais o mesmo
em seu reflexo exterior,
mas alguma coisa se diga das cavernas fosforescentes
que navegam a fome do demônio
na hora do seu resplendor


Olha o meu corpo antigo na curva do chafariz
ou no leme do navio.
Eu sou um pássaro noturno perturbado.
Eu te ofereço os meus seios muito brancos
numa escada secreta do mar Cáspio.


Alguém falou de um modo descuidado
e as gárgulas de Notre Dame
contornaram os mamilos
como breves e clandestinos fogo-fátuos.


O corpo - dizem - já não será o mesmo,
desesperadamente eu te desejo
enquanto navego rochas subterrâneas
à beira da consciência humana
e o racha da atmosfera interfere na faixa luminosa
bem no centro da tela da televisão que se quebrou.


Porque naquele tempo
o amor era como um príncipe bêbado e forçosamente hindu
ele era como a voz rouca de Dioniso
fazendo soar as teclas do piano austríaco
abandonado na passarela vermelha
de um carnaval de plumas na rua do Bom Jesus.


Saí pelo ancoradouro embriagada
arrastando candelabros escarlates
no rio de letreiros luminosos
enquanto a chuva batia no bico duro daqueles seios
ardendo sempre de tanto amor.


Todos eram demais e não sabiam
mas quando tu me pegaste forte
eu me surpreendi tímida
e até hoje estou fugindo entre palmeiras
pelas estradas líquidas do vinho e do neon.


Digo que continua urgente a ilusão desse momento
acometido de inenarráveis confissões.
Utopia presa na cartilagem úmida,
quando tua boca recobrir o seio
seremos então as duas outras faces
de uma mesma única possessão,
como uma estória colada na outra
enquanto se lambe o lacre da carta escrita na infância
que uma água subitamente morna quase apagou.


Como dizer, sem te estranhar: recusa-me
que a dama nua ao telefone pode estar no transe
a que tanto aspiras sob o vermelho das lanternas
enquanto a chuva cobre os telhados à beira-mar.
Tudo agora se tornou tão urgente
que dói a espera imemorial das bonecas
sobre a madeira escura
imóveis mas não inertes
a aguardar seu número de magia
quebrando a banalidade dos noticiários da televisão.


A blusa de cetim verde tem um decote de princesa judia
assassinada nua em campo de concentração
esplêndido violinista, vamos enlouquecendo devagar.
A blusa de cetim verde deixa entrever
a parte morta da carne branca
sob a luz do globo fosforescente
girando sobre os dançarinos
amanhã invisíveis do bar Royal.


Fecha os olhos e pensa no que quiseres
enquanto as mãos e as bocas
cumprem roteiros de miragens desérticas,
enquanto eu toco novamente
o meu piano austríaco na calçada do cais
e o mar quase arrebenta as janelas dalinianas
do Armazém XIV.


Porque o espírito há-de ser sempre o mesmo
eu desafio a tua preferência
e a blusa de cetim verde sem meu corpo dentro
tem ainda um oceano de lantejoulas
refletindo a vibração da pele
que por alguns momentos a habitou.


Dragão gigante
língua demoníaca
união clandestina
avesso encantamento
abismo vulcânico
onde a partitura se desfez em notas a cobrir a pauta
que guia o violoncelista ao Palácio de Cristal.


Fecha os olhos e beija-me de modo frágil
porque tudo se tornou mais urgente
desde o Museu Serralves
e os desenhos rosa do mármore
revelam caminhos recifenses da pele emparedada
sonhando o êxtase da ressurreição.


O teu olhar tem o mesmo brilho de um atirador de facas
enquanto giro na roda sobre mim mesma
dramaticamente presa nas cordas
ao som de Tchaicovski na Abertura 1812.


O teu olhar é como um sino milenarmente gigante
rondando os patamares da Régua
até a calçada de Copacabana,
o teu olhar é como um barco viking pedindo enseada
desde os coqueiros do Recife
até os verdes pinheiros galegos
que deram sombra ao romance dos meus bisavós.


Sei que hás de vir sob a neve enluarada
conduzindo lanterna no pescoço do cavalo branco
e me tomarás a galope em tua capa de veludo escuro
enquanto no circo abandonado
a trapezista continuará dormindo
completamente nua
na jaula dos leões.


Sei que hás de vir ferozmente enfeitiçado
nesse rapto anunciado para cruzar as águas do Capibaribe ao Douro
e dançaremos à luz de um candelabro de sete braços
até o sol secar as sete saias
tiradas ao som de sete violinos
durante as sete noites da encantação.


Mas não demores tanto.
Que amar é a arte
de se fazer presente
e tudo aquilo que precisamos
é de poesia
loucura e ênfase
no ato heróico de reabrir as portas
da carne mansa que se equivocou.


Que o corpo - dizem - já não será o mesmo
e o que era assédio pode retemperar-se em fuga
e até nós – dizem – não seremos os mesmos
no estranho instante de raio laser
em que chegar sem aviso o prazer da manhã.

***

FALARÃO MEUS POEMAS PELAS RUAS...

Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
e aqueles que sorriam pelas costas
recitarão meus versos sem os ler

Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
dirão que fui um mar misterioso
onde quem navegou não esqueceu

Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
dirão que era poesia e não loucura
meu jeito de sonhar todos vocês

Falarão meus poemas pelas ruas
de cor como receita de viver
perguntarão por que vivi tão pouco
sem dar-lhes tempo de me perceber


        — e aqueles que sorriam pelas costas
        recitarão meus versos sem os ler

***

VÉU DE PIRILAMPO


E eu coloquei meus óculos escuros
contra a mediocridade dos neons
contra a agressão das almas monstruosas
e a crueldade oculta nas manhãs
— na penumbra amnésica anteparo
o cotidiano fogo dos dragões.

E eu ajustei meus óculos escuros
mas vi gente comendo carne humana
crianças assaltando à mão armada
cheirando cola ou sendo trucidadas
enquanto os vaidosos declamavam
a sua dor tão dicionarizada.

E eu saio à rua de óculos escuros
porque me cega a cena da injustiça
porque a lei só legítima a força
descobriu a platéia o fundo falso
do palco onde encerrou-se o último ato
e se esqueceram de fechar o pano.

E eu uso sempre os óculos escuros
porque o mundo é uma faca nas pupilas
trapézio inteiro de arame farpado
sobre a rede de areia movediça
a pele triturada e sem aplausos
prossigo encantadora de serpentes
E eu saio à noite de óculos escuros
porque meu corpo acende nessa hora
meus óculos são véu de pirilampo
me resguardam de dentro para fora
escondem o meu sol subcutâneo
— são a nave em que chego até os homens.