quarta-feira, 25 de julho de 2012

MARINA COLASANTI (1937- )


Marina Colasanti (Sant'Anna) nasceu em 26 de setembro de 1937, em Asmara (Eritréia), Etiópia. Viveu sua infância na Africa (Eritréia, Líbia). Depois seguiu para a Itália, onde morou 11 anos. Chegou ao Brasil em 1948, e sua família se radicou no Rio de Janeiro, onde reside desde então. Possui nacionalidade brasileira e naturalidade italiana. Entre 1952 e 1956 estudou pintura com Catarina Baratelle; em 1958 já participava de vários salões de artes plásticas, como o III Salão de Arte Moderna. Nos anos seguintes, atuou como colaboradora de periódicos, apresentadora de televisão e roteirista. Ingressou no Jornal do Brasil em 1962, como redatora do Caderno B, desenvolveu as atividades de: cronista, colunista, ilustradora, sub-editora, Secretária de Texto. Foi também editora do Caderno Infantil do mesmo jornal. Participou do Suplemento do Livro com numerosas resenhas. No mesmo período editou o Segundo Tempo, do Jornal dos Sports. Assinou seções nas revistas: Senhor, Fatos & Fotos, Ele e Ela, Fairplay, Claudia e Jóia.Em 1976 ingressou na Editora Abril, na revista Nova da qual já era colaboradora, com a função de editora de comportamento.De fevereiro a julho de 1986 escreveu crônicas para a revista Manchete. Em 1968, foi lançado seu primeiro livro, Eu Sozinha; desde então, publicou mais de 30 obras, entre literatura infantil e adulta. Seu primeiro livro de poesia, Cada Bicho seu Capricho, saiu em 1992. Em 1994 ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, por Rota de Colisão (1993), e o Prêmio Jabuti Infantil ou Juvenil, por Ana Z Aonde Vai Você?. Suas crônicas estão reunidas em vários livros, dentre os quais Eu Sei, mas não Devia (1992) que recebeu outro prêmio Jabuti, além de Rota de Colisão igualmente premiado. Publicou vários livros de contos, crônicas, poemas e histórias infantis. Dentre outros escreveu E por falar em amor; Contos de amor rasgados; Aqui entre nós, Intimidade pública, Eu sozinha, Zooilógico, A morada do ser, A nova mulher (que vendeu mais de 100.000 exemplares), Mulher daqui pra frente, O leopardo é um animal delicado, Gargantas abertas e os escritos para crianças Uma idéia toda azul e Doze reis e a moça do labirinto de vento. Colabora, atualmente, em revistas femininas e constantemente é convidada para cursos e palestras em todo o Brasil. É casada com o escritor e poeta Affonso Romano de Sant'Anna com quem teve duas filhas: Fabiana e Alessandra. Em suas obras, a autora reflete, a partir de fatos cotidianos, sobre a situação feminina, o amor, a arte, os problemas sociais brasileiros, sempre com aguçada sensibilidade. 







ROTA DE COLISÃO


De quem é esta pele
que cobre a minha mão
como uma luva?
Que vento é este
que sopra sem soprar
encrespando a sensível superfície?
Por fora a alheia casca
dentro a polpa
e a distância entre as duas
que me atropela.
Pensei entrar na velhice
por inteiro
como um barco
ou um cavalo.
Mas me surpreendo
jovem velha e madura
ao mesmo tempo.
E ainda aprendo a viver
enquanto avanço
na rota em cujo fim
a vida
colide com a morte. 



***



ÀS SEIS DA TARDE...


Às seis da tarde
as mulheres choravam
no banheiro.
Não choravam por isso
ou por aquilo
choravam porque o pranto subia
garganta acima
mesmo se os filhos cresciam
com boa saúde
se havia comida no fogo
e se o marido lhes dava
do bom
e do melhor
choravam porque no céu
além do basculante
o dia se punha
porque uma ânsia
uma dor
uma gastura
era só o que sobrava
dos seus sonhos.
Agora
às seis da tarde
as mulheres regressam do trabalho
o dia se põe
os filhos crescem
o fogo espera
e elas não podem
não querem
chorar na condução 


***


FRUTOS E FLORES


Meu amado me diz
que sou como maçã
cortada ao meio.
As sementes eu tenho
é bem verdade.
E a simetria das curvas.
Tive um certo rubor
na pele lisa
que não sei
se ainda tenho.
Mas se em abril floresce
a macieira
eu maçã feita
e pra lá de madura
ainda me desdobro
em brancas flores
cada vez que sua faca
me traspassa.




BERNARDO GUIMARÃES (1825-1884)



Bernardo Guimarães formou-se Bacharel em Direito em São Paulo, no ano de 1852. No mesmo ano, era publicado Cantos da Solidão, seu primeiro livro de poesia. Em São Paulo, conviveu com Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa e José Bonifácio, o Moço. Entre 1858 e 1861 viveu no Rio de Janeiro, onde trabalhou como jornalista e crítico literário no jornal Atualidade. Em 1965 publicou o livro Poesias. Exerceu as funções de professor do ensino secundário em Ouro Preto e Queluz, e de juiz municipal em Catalão, Estado de Goiás. A partir de 1869, publicaria dez romances pela Editora Garnier, entre eles A Escrava Isaura (1875). Em 1876 foi publicado Novas Poesias; seguiram-se Folhas do Outono (1883) e Elixir do Pajé, A Origem do Mênstruo, A Orgia dos Duendes (1888). Na época em que participou da criação da Sociedade Epicureia, Bernardo Guimarães teria introduzido no Brasil o bestialógico (ou pantagruélico), que se tratava de poesia cujos versos não tinham nenhum sentido, embora bem metrificados. Usando do burlesco, o satírico e o nonsense, esta poesia faz de Bernardo Guimarães um precursor brasileiro do Surrealismo, conforme Haroldo de Campos. Recusou o título de barão, oferecido pelo Imperador D. Pedro II, em 1881. Poeta da segunda geração do Romantismo brasileiro, Bernardo Guimarães tematizou, como seus contemporâneos, a pátria e a natureza; porém é por sua poesia humorística, por vezes obscena, que se singularizou. Herança do satanismo de sua fase juvenil e boêmia, seus poemas erótico-satíricos, como A Origem do Mênstruo, evidenciam-se no panorama romântico da época.




EU VI DOIS PÓLOS...


Eu vi dos pólos o gigante alado
sobre um montão de pálidos coriscos,
sem fazer caso dos bulcões ariscos
devorando em silêncio a mão do fado.

Cinco fatias de tufão gelado,
figuravam na mesa entre os petiscos,
envolto em crepe de fatais rabisco
campeava o sofisma ensangüentado.

Quem és? Que assim me cercas de episódios
lhe perguntei com voz de silogismo,
brandindo um facho de trovões serôdios!

Eu sou, me disse, aquele anacronismo
que a vil caterva de sulfúricos ódios,
nas trevas sepultei de um solecismo.


***



ILUSÃO DESFEITA




"Oh! acredita, nunca olhar de virgem
Coou-me n'alma tanto ardor assim;
Nunca amor me sorriu com tanta graça
Em lábios de carmim!

"Tu és o anjo sonhado que minha alma
Aos céus pedia; - a flor que em meus caminhos
Encontrei a sorrir pura e fragrante
Do mundo entre os espinhos.

"Pio romeiro, irei aos pés depor-te
Oferenda singela, porém fida;
A ti a lira e o coração do bardo!...
A ti a minha vida.

"Cantar-te as graças, e mandar teu nome
Unido ao meu aos séculos vindouros,
Seria para mim melhor que um trono,
Melhor que mil tesouros.

"Porém passar meus dias a teu lado,
Ouvir-te as falas, contemplar-te o riso,
Gozar teus mimos, fôra para esta alma
Melhor que o paraíso!"

------------------------

Assim dizia-te eu naquele dia,
- O mais doce talvez da minha vida,
Em que na meiga luz desses teus olhos
Minha alma vi perdida.

Foi um sonho fugaz; - breve delírio.
De novo tenho o coração vazio;
E se no peito meu a mão pousares,
Achá-lo-ás bem frio!..

Caíste enfim da região de encantos,
A que meus puros sonhos te elevaram;
Desfez-se o talismã; - foram-se enganos,
Que outrora me embalaram.

Perdeste um coração que te adorava...
Porém que importa? se por um, que esfria,
Mil outros corações após teus risos
Vão correndo à porfia.

Mas não receies que eu maldiga aquela
Que num momento a vida me dourara;
E que num pego de emoções bem doces
Outrora me entranhara.

Oh! não receies, não, que eu te maldiga;
Graças a ti, aprendo hoje por fim
A não crer tanto nos fagueiros risos
De uns lábios de rubim.

Proveitosa lição nos fica n'alma,
Quando a ilusão se esvai:
Deixa um fruto no ramo, em que nascera
A flor, que murcha e cai.





A ORIGEM DO MÊNSTRUO

De uma fábula inédita de Ovídio, achada
nas escavações de Pompéia e vertida
em latim vulgar por Simão de Nuntua.



'Stava Vênus gentil junto da fonte
fazendo o seu pentelho,
com todo o jeito, pra que não ferisse
das cricas o aparelho.

Tinha que dar o cu naquela noite
ao grande pai Anquises,
o qual, com ela, se não mente a fama,
passou dias felizes...

Rapava bem o cu, pois resolvia
na mente altas idéias:
- ia gerar naquela heróica foda
o grande e pio Enéias.

Mas a navalha tinha o fio rombo,
e a deusa, que gemia,
arrancava os pentelhos e, peidando,
caretas mil fazia!

Nesse entretanto, a ninfa Galatéia,
acaso ali passava,
e vendo a deusa assim tão agachada,
julgou que ela cagava...

Essa ninfeta travessa e petulante
era de gênio mau,
e por pregar um susto à mãe do Amor
atira-lhe um calhau...

Vênus se assusta. A Branca mão mimosa
se agita alvoroçada,
e no cono lhe prega (oh! caso horrendo!)
tremenda navalhada.

Da nacarada cona, em sutil fio,
corre pupúrea veia,
e nobre sangue do divino cono
as águas purpurcia...

(É fama que quem bebe dessas águas
jamais perde a tensão
e é capaz de foder noites e dias,
até no cu de um cão!)

- "Ora porra" - gritou a deusa irada,
e nisso o rosto volta...
E a ninfa, que conter-se não podia,
uma risada solta.

A travessa menina mal pensava
que, com tal brincadeira,
ia ferir a mais mimosa parte
da deusa regateira...

- "Estou perdida!" - trêmula murmura
a pobre Galatéia,
vendo o sangue correr do rósco cono
da poderosa déia...

Mas era tarde! A Cípria, furibunda,
por um momento a encara,
e, após instantes, com severo acento,
nesse clamor dispara:

"Vê! Que fizeste, desastrada ninfa,
que crime cometeste!
Que castigo há no céu, que punir possa
um crime como este?!

Assim, por mais de um mês inutilizas
o vaso das delícias...
E em que hei de gastar das longas noites
as horas tão propícias?

Ai! Um mês sem foder! Que atroz suplício...
Em mísero abandono,
que é que há de fazer, por tanto tempo,
este faminto cono?...

Ó Adonis! Ó Júpiter potentes!
E tu, mavorte invito!
E tu, Aquiles! Acudi de pronto
da minha dor ao grito!

Este vaso gentil que eu tencionava
tornar bem fresco e limpo
para recreio e divinal regalo
dos deuses do Alto Olimpo.

Vede seu triste estado, ó! Que esta vida
em sangue já se esvai-me!
Ó Deus, se desejais ter foda certa
vingai-vos e vingai-me!

Ó ninfa, o teu cono sempre atormente
perpétuas comichões,
e não aches quem jamais nele queira
vazar os seus colhões...

Em negra podridão imundos vermes
roam-te sempre a crica
e à vista dela sinta-se banzeira
a mais valente pica!

De eterno esquentamento flagelada,
verta fétidos jorros,
que causem tédio e nojo a todo mundo,
até mesmo aos cachorros!"

Ouviu-lhe estas palavras piedosas
do Olimpo o Grão-Tonante,
que em pívia ao sacana do Cupido
comia nesse instante...

Comovido no íntimo do peito,
das lástimas que ouviu,
manda ao menino que, de pronto, acuda
à puta que o pariu...

Ei-lo que, pronto, tange o veloz carro
de concha alabastrina,
que quatro aladas porras vão tirando
na esfera cristalina

Cupido que as conhece e as rédeas bate
da rápida quadriga,
co'a voz ora as alenta, ora co'a ponta
das setas as fustiga.

Já desce aos bosques onde a mãe, aflita,
em mísera agonia,
com seu sangue divino o verde musgo
de púrpura tingia...

No carro a toma e num momento chega
à olímpica morada,
onde a turba dos deuses, reunida,
a espera consternada!

Já Mercúrio de emplastros se a aparelha
para a venérea chaga,
feliz porque naquele curativo
espera certa a paga...

Vulcano, vendo o estado da consorte,
mil pragas vomitou...
Marte arranca um suspiro que as abóbadas
celestes abalou...

Sorriu o furto a ciumenta Juno,
lembrando o antigo pleito,
e Palas, orgulhosa lá consigo,
resmoneou: - "Bem-feito!"

Coube a Apolo lavar dos roxos lírios
o sangue que escorria,
e de tesão terrível assaltado,
conter-se mal podia!

Mas, enquanto se faz o curativo,
em seus divinos braços,
Jove sustém a filha, acalentando-a
com beijos e com abraços.

Depois, subindo ao trono luminoso,
com carrancudo aspeto,
e erguendo a voz troante, fundamenta
e lavra este DECRETO:

-"Suspende, ó filha, os lamentos justos
por tão atroz delito,
que no tremendo Livro do Destino
de há muito estava escrito.

Desse ultraje feroz será vingado
o teu divino cono,
e as imprecações que fulminaste
agora sanciono.

Mas, inda é pouco: - a todas as mulheres
estenda-se o castigo
para expiar o crime que esta infame
ousou para contigo...

Para punir tão bárbaro atentado,
toda humana crica,
de hoje em diante, lá de tempo em tempo,
escorra sangue em bica...

E por memória eterna chore sempre
o cono da mulher,
com lágrimas de sangue, o caso infando,
enquanto mundo houver..."

Amém! Amém! com voz atroadora
os deuses todos urram!
E os ecos das olímpicas abóbadas,
Amém! Amém! Sussurram.

ARAÚJO FIGUEIREDO (1865-1927)



Juvêncio de Araújo Figueiredo foi um poeta simbolista brasileiro. Seus trabalhos numerosos, entre os quais ressaltam Sombras da Noite e Ascetérios, estão esparsos nos jornais da época. Enamorado do mar, das coisas simples, das belezas da paisagem de Coqueiros, bairro onde nasceu e viveu. Iniciou sua vida como tipógrafo, passando posteriormente a colaborar em vários jornais, tanto de sua terra como de outros pontos do país. Poeta mavioso, teve a honra de fazer parte de um grupo de beletristas, do qual faziam parte Cruz e Sousa, Santos Lostada, Oscar Rosas, Virgílio Várzea, Horácio de Carvalho e outros. Em 1904, escreveu Ascetérios. Logo após produziu alguns trabalhos inéditos, tais como Praias e Novenas de Maio. Foi companheiro e amigo predileto do genial Cruz e Sousa, fazendo parte da Academia Catarinense de Letras, onde ocupava a cadeira de número 17. No exercício de funções públicas, foi secretário do município de São José, em Santa Catarina, galgando posteriormente o cargo de secretário da Assembléia Legislativa de Santa Catarina, em Florianópolis. Também foi um infatigável servidor do Espiritismo, devendo-se a ele grande parte dos trabalhos de divulgação que foram realizados em Santa Catarina.




EMPAREDADO


Por planícies e espérrimas montanhas
andei errando como um beduíno,
e contei ao luar o meu destino,
velado por dragões de outras entranhas.

E a ti, ó sol, que de purezas banhas
os campos verdes, num clarão divino,
contei, também, chorando, o desatino
das minhas ânsias trágicas, estranhas.

Mas não contei ao mar as minhas ânsias,
ao largo mar perdido nas distâncias,
para não vê-lo, dessa vez, cavado.

Pois esse mar é um coração doente,
igual ao meu, e vive eternamente,
eternamente triste e emparedado.

        
***



SOMBRAS AMIGAS

Sombras da noite, leves como as aves,
aconchegos e frêmitos de amores,
que em nossas asas de esquisitas cores
subam para o Alto os meus anseios graves.

Sombrfas flébeis, tenuíssimas, suaves,
emigras de um chão de negras flores,
levari-me as mágoas e as secretas dores
pelas mais altas e silenciosas naves...

Ascendendo às alturas das montanhas,
que os meus anseios de ferais entranhas,
que todo esse clamor de ansiedade,

Erre junto de nós, sombras da noite,
e numa estrela rútila se acoite,
em busca de repouso e de piedade.


***





AS NOSSAS ÂNSIAS


Para as estrelas vão as nossas ânsias;
todas as ânsias que na Dor sentimos...
São aves que se perdem nas distâncias;
e, nas asas dos sonhos, as seguiram.

E lá, mais delicadas que fragrâncias
dos liriais que no caminho vimos,
todas elas, vestidas de flamâncias,
são as árias da luz, que no ar ouvimos.

Mas as ânsias que vão, serenamente,
para as estrelas, e por lá, na albente
doçura casta das estrelas ficam.

São, com certeza, aquelas que, no mundo,
neste sinistro báratro profudo,
nos cadinhos do amor se purificam.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

FERREIRA GULLAR (1930- )


Ferreira Gullar (José Ribamar Ferreira), nasceu no dia 10 de setembro de 1930, na cidade de São Luiz, capital do Maranhão, quarto filho dos onze que teriam seus pais, Newton Ferreira e Alzira Ribeiro Goulart. Inicia seus estudos no Jardim Decroli, em 1937, onde permanece por dois anos. Depois, estuda com professoras contratadas pela família e em um colégio particular, do qual acaba fugindo. Em 1941, matriculou-se no Colégio São Luís de Gonzaga, naquela cidade. Aprovado em segundo lugar no exame de admissão do Ateneu Teixeira  Mendes, em 1942, não chega a concluir o ano letivo nesse colégio. Ingressa na Escola Técnia de São Luís, em 1943. Apaixonado por uma vizinha, Terezinha, deixa os amigos e passa a se dedicar à leitura de livros retirados da Biblioteca Municipal e a escrever poemas. Na redação sobre o Dia do Trabalho, onde ironizava o fato de não se trabalhar nesse dia, em 1945, obtém nota 95 e recebe elogios pelo seu texto. Só não obteve a nota máxima em virtude dos erros gramaticais cometidos. Face ao ocorrido, dedica-se ao estudo das normas da língua. Essa redação foi inspiradora do soneto O trabalho, primeiro poema publicado por Gullar no jornal O Combate, de São Luís, três anos depois. Torna-se locutor da Rádio Timbira e colaborador do Diário de São Luís, em 1948. Editado com recursos próprios e o apoio do Centro Cultural Gonçalves Dias, publica seu primeiro livro de poesia, Um pouco acima do chão. Em 1950, após haver presenciado o assassinato de um operário pela polícia, durante um comício de Adhemar de Barros na Praça João Lisboa, em São Luís, nega-se a ler, em seu programa de rádio, uma nota que aponta os "baderneiros" e "comunistas" como responsáveis pelo ocorrido. Perde o emprego, mas é convidado para participar da campanha política no interior do Maranhão. Vence o concurso promovido pelo Jornal de Letras com o poema O galo. A comissão julgadora era formada por Manuel Bandeira, Odylon Costa Filho e Willy Lewin. Começa a escrever poemas que, mais tarde, integrariam seu livro A luta corporal. Muda-se para o Rio de Janeiro (RJ), em 1951. Passa a trabalhar na redação da Revista do Instituto de Aposentadoria e Pensão do Comércio, para onde foi indicado por João Condé. Torna-se amigo do crítico de arte Mário Pedrosa. A publicação de seu conto Osiris come flores, na Revista Japa, rende-lhe mais um emprego: o de revisor da revista O Cruzeiro, por indicação de Herberto Sales, que se encantou com o conto publicado. Vai até a cidade de Correias, no Rio de Janeiro, onde, por três meses, trata-se de uma tuberculose. Oswald de Andrade, que havia lido A luta corporal, texto inédito e recém-concluído de Gullar, no dia de seu aniversário, em 1953, presenteia-o com dois volumes teatrais de sua autoria: A morta, O Rei da Vela, e O homem a cavalo. Em 1954, casa-se com a atriz Thereza Aragão, com quem teve três filhos: Paulo, Luciana e Marcos. Lança A luta corporal, que causou desentendimentos com os tipógrafos em função do projeto gráfico apresentado. Após sua leitura, Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari manifestam-lhe, por carta, o desejo de conhecê-lo. No fim desse ano, passa a trabalhar como revisor na revista Manchete. Seu encontro com Augusto de Campos se dá às vésperas do carnaval de 1955, resultando inúmeras discussões sobre a literatura. Trabalha como revisor no Diário Carioca e, posteriormente, engaja-se no projeto Suplemento dominical do Jornal do Brasil. A convite do trio de escritores paulistas acima citados, participa da I Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956. Em janeiro do ano seguinte, o MAM carioca recebe a citada exposição. Gullar discorda da publicação do artigo Da psicologia da composição à matemática da composição, escrito pelo grupo concretista de São Paulo. Redige resposta intitulada Poesia concreta: experiência fenomenológica. Os dois textos são publicados lado a lado na mesma edição do Suplemento Dominical. Com seu artigo, Gullar marca sua ruptura com o movimento. Em 1958, lança o livro Poemas. No ano seguinte, escreve o Manifesto Neo-concreto, publicado no Suplemento Dominical e que foi também assinado por, entre outros, Lygia Pape, Franz Waissman, Lygia Clark, Amilcar de Castro e Reynaldo Jardim. Ali também foi publicado Teoria do não-objeto. Criou o livro-poema e o Poema enterrado, que consistia de uma sala subterrânea, dentro da qual  havia um cubo de madeira de cor vermelha, dentro desse outro, verde, de menor diâmetro, e, finalmente, um último cubo de cor branca que, ao ser erguido, permitia a leitura da palavra Rejuvenesça. Construído na casa do pai do artista plástico Hélio Oiticica, a "instalação" não pode ser vista pelo público: uma inundação, provocada por fortes chuvas, alagou a sala e destruiu os cubos. É nomeado, em 1961, com a posse de Jânio Quadros, diretor da Fundação Cultural de Brasília. Elabora o projeto do Museu de Arte Popular e inicia sua construção. Revê sua postura poética, até então muito marcada pelo experimentalismo, e passa a não atuar nos movimentos de vanguarda. Fica no cargo até outubro/61. Emprega-se, em 1962, como copidesque na filial carioca do jornal O Estado de São Paulo, para o qual trabalharia por 30 anos. Ao mesmo tempo, ingressa no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC). Publica João Boa-Morte, cabra marcado para morrer e Quem matou Aparecida. Assume, com essas publicações, uma nova atitude literária de engajamento político e social. No ano seguinte é eleito presidente do CPC. Lança o ensaio Cultura posta em questão. Em 1964, a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) é invadida e a primeira edição do citado ensaio acaba queimada. No dia 1º de abril de 1964, filia-se ao Partido Comunista Brasileiro. Ao lado de Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes, Thereza Aragão, Pichin Pla, entre outros, funda o Grupo Opinião. Em 1966, a peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, escrita em parceria com Oduvaldo Viana Filho, é encenada pelo Grupo Opinião no Rio de Janeiro, e conquista os prêmios Molière e Saci. No ano seguinte o mesmo grupo encena, também no Rio, a peça A saída? Onde está a saída?, escrita em parceria com Antônio Carlos Fontoura e Armando Costa. Por você, por mim, poema sobre a guerra do Vietnã, é publicada em 1968, juntamente com o texto da peça Dr. Getúlio, sua vida e sua glória, escrita em parceria com Dias Gomes e montada nos teatros Opinião e João Caetano, no Rio de Janeiro, com a direção de José Renato. Com a assinatura do Ato Institucional nº 5, é preso, em companhia de Paulo Francis, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Em 1969, lança o ensaio Vanguarda e subdesenvolvimento. 1970 marca sua entrada na clandestinidade. Passa a dedicar-se à pintura. Informado por amigos, em 1971, do risco que corria se continuasse no Brasil, decide partir para o exílio, morando primeiro em Moscou (Russia) e depois em Santiago (Chile), Lima (Peru) e Buenos Aires (Argentina). Durante esse período, colabora com o semanário O Pasquim, sob o pseudônimo  de Frederico Marques. Seu pai falece em São Luís (MA). Em 1974, por unanimidade, é absolvido no Supremo Tribunal Federal, da acusação. Publica, em 1975, Dentro da noite veloz. O Poema sujo é escrito entre maio de outubro desse ano. Em novembro, lê o novo trabalho na casa de Augusto Boal, em Buenos Aires, para um grupo de amigos. Vinicius de Moraes, que organizou a sessão de leitura, pede uma cópia do poema para trazer ao Rio. Por precaução, o poema é gravado em fita cassete. No Rio, Vinicius promove diversas sessões para que intelectuais e jornalistas ouvissem o Poema sujo. Ênnio Silveira, editor, pede uma cópia do texto para publicá-lo em livro. Enquanto isso não acontece, diversas cópias da gravação circulam pela cidade em sessões fechadas de audição. No ano seguinte, sem a presença do poeta, o Poema sujo é lançado, enquanto Gullar dá aulas particulares de português em Buenos Aires, para poder sobreviver. Amigos tentam um salvo-conduto junto às autoridades militares, procurando obter garantias para que ele volta ao país. Somente em 10 de março de 1977 desembarca no Rio. No dia seguinte, é preso pelo Departamento de Polícia Política e Social, órgão sucessor do famoso DOPS. As ameaças feitas por agentes policiais, que se estendiam a membros de sua família, só terminaram após 72 horas de interrogatórios, ocasião em que é libertado face à movimentação de amigos junto às autoridades do regime militar. Retorna, aos poucos, às atividades de crítico, poeta e jornalista. Lança Antologia Poética. La lucha corporal y otros incendios é publicada em Caracas, Venezuela. No ano seguinte, 1978, grava o disco Antologia poética de Ferreira Gullar e, sob a direção de Bibi Ferreira, é encenada a peça teatral Um rubi no umbigo. Começa a escrever para o Grupo de Dramaturgia da Rede Globo, indicado pelo amigo Dias Gomes. Seu livro Na vertigem do dia é publicado em 1980 e Toda poesia, reunião de sua obra poética, comemora seus 50 anos de vida. Estréia a versão teatral do Poema sujo, com a interpretação de Esther Góes e Rubens Corrêa, sob a direção de Hugo Xavier, na Sala Sidney Miller, no Rio de Janeiro. Lança o livro Sobre arte, coletânea de artigos publicados na revista Módulo, entre 1975 e 1980. A Rede Globo exibe o seu especial Insensato coração, em 1983. Em 1984, recebe o título de "Cidadão Fluminense" na Assembléia Legislativa do Rio. Profere a conferência "Educação criadora e o desafio da transformação sócio-cultural" na abertura do 25º Congresso Mundial de Educação pela Arte, realizado na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Com a tradução de Cyrano de Bergerac, de Edmond Rostand, publicada em 1985, é agraciado como prêmio Molière, até então inédito para a categoria tradutor. Em 1987 lança Barulhos. Dois anos depois, publica ensaios sobre cultura brasileira e a questão da vanguarda em países desenvolvidos, no livro Indagações de hoje. A estranha vida banal, uma coletânea de 47 crônicas escritas para O Pasquim e Jornal do Brasil, são publicadas em 1990. Colabora com Dias Gomes na novela Araponga. Morre, no Rio, seu filho mais novo, Marcos. Nomeado diretor do Instituto Brasileiro de Arte e Cultura (IBAC), em 1992, lá permanece até 1995. A Rede Globo exibe a minissérie As noivas de Copacabana, escrita em parceria com Dias Gomes e Marcílio Moraes. Lança, em 1993, Argumentação contra a morte da arte, que provoca polêmica entre artistas plásticos. Morre, no Rio, sua mulher Thereza Aragão, em 1994. Seu livro Luta corporal ganha edição comemorativa a seus 40 anos de publicação. No Centro Cultural Banco do Brasil - Rio, ocorre um evento sobre o trabalho do poeta. Em 1997, lança Cidades inventadas, coletânea de contos escritos ao longo de 40 anos. Passa a viver com a poeta Cláudia Ahimsa. No ano seguinte publica Rabo de foguete - Os anos de exílio. É homenageado no 29º Festival Internacional de Poesia de Rotterdã. Lança, em 1999, o livro Muitas vozes e é agraciado com o Prêmio Jabuti, categoria poesia. Recebe, também, o Prêmio Alphonsus de Guimarães, da Biblioteca Nacional. Ferreira Gullar 70 anos foi o nome dado à exposição aberta em setembro de 2000, no Museu de Arte Moderna do Rio, para marcar o aniversário do poeta. Ocorre o lançamento da nona edição de Toda poesia, reunião atualizada de todos os poemas de Gullar. O poeta recebe o prêmio Multicultural 2000, do jornal O Estado de São Paulo. No final do ano, lança Um gato chamado Gatinho, 17 poemas sobre seu felino escritos para crianças. É publicado na coleção Perfis do Rio Ferreira Gullar - Entre o espanto e o poema, de George Moura em 2001. São reunidas crônicas escritas para o Jornal do Brasil nos anos 60 no livro O menino e o arco-íris. Lança uma coleção infanto-juvenil O rei que mora no mar, poemas dos anos 60 deGullar. Em 2002, é indicado ao Prêmio Nobel de Literatura por nove professores titulares de universidades de Brasil, Portugal e Estados Unidos. São relançados num só livro, os ensaios dos anos 60: Cultura posta em questão e Vanguarda e subdesenvolvimento. Em dezembro o poeta recebe o Prêmio Príncipe Claus, da Holanda, dado a artistas, escritores e instituições culturais de fora da Europa que tenham contribuído para mudar a sociedade, a arte ou a visão cultural de seu país. Lança Relâmpagos, reunindo 49 textos curtos sobre artes, abordando obras de Michelangelo, Renoir, Picasso, Calder, Iberê Camargo e muitos outros. A edição 2010 do Prêmio Luís de Camões ficou com o brasileiro Ferreira Gullar. O mais importante prêmio literário da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, criado em conjunto pelos governos  do Brasil e de Portugal, renderá ao escritor 100 mil euros. Já foram agraciados, entre outros, João Ubaldo Ribeiro, João Cabral de Melo Neto, Arménio Vieira, Rubem Fonseca, Miguel Torga, Antonio Candido, Lygia Fagundes Telles,  Lobo Antunes. O premiado poeta completa 80 anos em 10 de setembro, quando lançará pela Ed. José Olympio Em alguma parte alguma, seu primeiro livro de poemas em mais de uma década. Poeta consagrado, o maranhense é também ensaísta, tradutor, dramaturgo e crítico de arte — além de assíduo palestrante sempre acompanhado por platéias numerosas.









O ANJO



O anjo, contido 
em pedra
e silêncio
me esperava.

Olho-o, identifico-o
tal se em profundo sigilo
de mim o procurasse desde o início.

Me ilumino! todo
o existido
fora apenas preparação
deste encontro.


2

Antes que o olhar, detendo o pássaro
no voo, do céu descesse
até o ombro sólido
do anjo,
criando-o
– que tempo mágico
ele habitava?


3

Tão todo nele me perco
que de mim se arrebentam
as raízes do mundo;

tamanha
a violência de seu corpo contra
o meu,
que a sua neutra existência
se quebra:
e os pétreos olhos
se acendem;
o facho
emborcado contra o solo, num desprezo
à vida
arde intensamente;
a leve brisa
faz mover a sua
túnica de pedra.


4

O anjo é grave
agora.
Começo a esperar a morte.




***

NARCISO E NARCISO


Se Narciso se encontra com Narciso
e um deles finge que ao outro admira
(para sentir-se admirado),
o outro pela mesma razão
finge também
e ambos acreditam na mentira.

Para Narciso o olhar do outro,
a voz do outro,
o corpo é sempre o espelho
em que ele a própria imagem mira.

E se o outro é
como ele outro Narciso,
é espelho contra espelho:
o olhar que mira reflete
o que o admira
num jogo multiplicado
em que a mentira
de Narciso a Narciso
inventa o paraíso.

E se amam mentindo
no fingimento que é necessidade
e assim mais verdadeiro que a verdade.

Mas exige, o amor fingido,
ser sincero o amor
que como ele é fingimento.
E fingem mais os dois
com o mesmo esmero
com mais e mais cuidado
- e a mentira se torna desespero.

Assim amam-se agorase odiando.
O espelho embaciado,
já Narciso em Narciso não se mira:
se torturam se ferem
não se largam que o inferno de Narciso
é ver que o admiravam de mentira.


***



CANTIGA PARA NÃO MORRER


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

GUSTAVO FELICÍSSIMO (1971- )


Gustavo Felicíssimo é natural de Marília, in­terior de São Paulo, radicando-se na Bahia a partir de 1993. Reside desde janeiro de 2007 em Itabu­na. Escritor e empreendedor cultural. Graduando do curso de Letras (UESC). Possui artigos publicados em importantes revistas, jornais e sites literários, entre os quais citamos: Jornal A Tarde, Revista O Escritor (UBE), e os sites www.cronopios.com.br e www.revistazunai.com. Em 2005, fundou em Salvador, juntamente com ou­tros escritores, o tablóide literário SOPA, do qual foi seu editor. Participa como representante da Bahia na 1ª Conferência Nacional de Cultura, 2005. 2006 – Promoveu o encontro literário SOLTAN­DO O VERBO, em Salvador, durante oito semanas consecutivas, no Restaurante Extudo, onde recebeu 16 escritores para falarem sobre suas obras e ques­tões fundamentais ligadas à literatura. 2007 – Começa a atuar como preparador de textos para diversas editoras. Colaborado com a publica­ção de: Firmino Rocha: Poemas escolhidos e inédi­tos, Via Litterarum. Inicia como colunista do jornal Agora, de Itabuna, atividade que mantém até o ano seguinte. Colabora, em 2008, com a publicação dos seguintes livros: Plínio de Almeida: poesia reunida, Editus; e Rascunhos do Absurdo, de Jorge Elias Neto, Editora Flor & Cultura, Espírito Santo. 2009. É organizador do livro Diálogos: Panorama da nova poesia grapiúna, Editus/Via Literarum. Em 2009, torna-se Diretor de Projetos da Fundação Cultural de Ilhéus. Já em 2010, a publicação da 2ª Edição de Diálogos: Panorama da Nova Poesia Grapiúna. Funda, em 2011, a convite do Teatro Popular de Ilhéus, a Mondrongo Livros. Tem publicado Outros Silêncios. Faz importante palestra no 23º Encontro Nacional de Haicaístas. 2012, funda a revista literária TOCAIA, da qual é um dos editores. Entre muitos prêmios que recebeu ,encontram-se: Prêmio Bahia de Todas as Letras em duas categorias: Poesia e Literatura de Cordel (2009). Prêmio Patativa do Assaré de Literatura de Cordel (Minc, 2011). Menção honrosa no Prêmio Cataratas de Contos (PR). Teve o conto O amigo de Caymmi selecionado para publicação na coletânea do Prêmio Maximiniano Campos de Contos (PE).  Prêmio Yoshio Takemoto de Literatura (SP) em duas categorias: Poesia e Conto, em 2012. Seu mais novo livro de poemas é Procura e outros poemas, também pela Mondrongo.







ELEGIA PARA ALBERTO DA CUNHA MELO


Outro chope, garçom,
sentimos sede porque a realidade é fuga
e fugaz o tempo se apresenta.
Sentimos sede porque a realidade é crua
e terríveis os seus desdobramentos,
tão terríveis quanto a razão que contraria a fé,
a vida envolvida em mistérios
e essa vertigem que me oferece este poema.
Ah, como é triste a condição humana!
Como é triste o horizonte que nos margeia.
Contudo, não será capaz o crepúsculo de evitar o gênio,
por isso essa Elegia no ventre da noite,
esse copo de chope, o linguajar vulgar.
Por isso, Alberto, os seus poemas insistem.
Neles me reconheço e me edifico,
uma vez que o tempo gasto
com inúteis procelas não nos alimenta,
pois em essência somos feitos de suavidade e compaixão.
Eu sei não ser preciso outro poeta eivá-lo de loas,
mas quiseram as Musas que fosse assim,
quiseram os anjos
e a pomba pousada sobre os livros sagrados
[que fosse assim.
Próximo aos teus poemas não tenho horário
ou percebo o tempo esvair,
próximo aos teus poemas o momento é outro
e outras são as formas do existir,
próximo aos teus poemas tenho a lua, os pélagos,
próximo aos teus poemas estou mais próximo de todo Ser.
Agora vai, viaja no infinito que a despedida é dispensável,
leva consigo as nuvens e o silêncio das borboletas,
leva no coração os dias floridos
enquanto ficamos aqui, vivendo essa Casa Vazia.



***


SENDA


Sou como o invisível céu
que não vos inspira cuidados,
pois retorno depois das névoas
sobre os campos abandonados;

sou finito e celebro o fogo
infindável do grande jogo

a nos enlaçar a garganta;
creio no vórtice da voz
sacrossanta que a tudo encanta;

trago os haveres desse mundo;
sou terra, sou campo fecundo.



***



HAI-KAI

...o vento de outono
como um pássaro que passa
partiu sem adeus...


MIGUEL MARVILLA (1959 – 2009)


Miguel Arcanjo Marvilla de Oliveira é um poeta, contista e editor espírito-santense. Graduado em Letras e mestre em História Antiga pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), foi editor da revista Você e um dos fundadores da Flor&Cultura Editores. Foi membro da Academia Espírito-santense de Letras, na qual ocupava a cadeira número dezoito. Recebeu vários prêmios literários estaduais e nacionais, além de uma menção honrosa no III Concurso Literário Internacional da Áustria, em 1996. Obteve o primeiro lugar no Concurso de Poesia organizado pelo Sindicato dos Bancários do Espírito Santo, em 1994. Publicou poemas e ensaios em várias revistas e jornais do Espírito Santo e do Brasil. Organizou, juntamente com Maria Helena Teixeira de Siqueira, a coletânea Escritos entre dois séculos (Flor&cultura, 2000). Foi, ainda, organizador e editor do livro Crônicas Escolhidas de José Carlos Fonseca (Flor&Cultura, 2000). Viveu seus últimos anos em Vitória (ES), onde preparava a publicação de O Império Romano e o Reino dos Céus, no qual dicute a construção da imagem sagrada do imperador de De laudibus Constantini, de Eusébio de Cesarélia (século IV d.C.); Zoo-ilógico, poesia para crianças (inclusive as que já cresceram) e Beleléu e adjacências (romance), futuros lançamentos da Flor&Cultura Editores da flor e Cultura. Apaixonado por literatura, Marvilla era leitor fiel de García Marquéz e Umberto Eco. Sobre Márquez, Miguel declarara: “é a melhor literatura do planeta, ouso dizer, pulando sobre Umberto Eco, Shakespeare e Joyce.”







A PALAVRA POESIA, POR EXEMPLO...

A palavra poesia, por exemplo,
roubada à sua forma dicionária,
não pode vigorar mais que um momento
se não se refletir no olhar de Mária.

E Mária, que se esquece, por completo
descuido ou prazer (quem tem certeza?)
de levar-se ao deixar as redondezas,
aos poucos, dando motes ao desejo,

recobre a superfície do planeta.
Por muito repetir-se em aquarelas,
vitrais, pessoas, gestos, sons e ruas,

sua forma sendo tantas, coisa alguma
a retém. Ela não cabe de uma vez
na memória – e ainda há mais Mária out of space.


***


E AGORA EM DESCONCERTO ME PERGUNTO...


E agora em desconcerto me pergunto
onde estou. Vou ver quem sou, volto mais mudo.
Ao silêncio, então, me exponho e, novamente,
sucumbido à solidão, calmo, entredentes,

vejo a luz que interrompia as persianas,
ouço a música dos corpos que eu tocava,
lembro os gestos de uma busca alucinada
do prazer que se antevia neles. Tantas,

tantas vezes, porém, encontrei Lias
disfarçadas entre as formas de Adrianas,
cada qual plantada em sua própria ilha,

que, por último, eu assim me esqueci
de encontrar-me e, a cada instante que passava,
fiquei nelas – eu assim que me perdi.


***


DO PONTO MAIS DISTANTE NA FLORESTA...

para Cláudia Bravim



Do ponto mais distante na floresta
de asas e desejos que freqüentas
à hora em que te despes, meio a esmo,
aproveitando as brumas de um soneto;

dos rastos nos escombros de poemas
erigidos às portas do teu nome
à substância sombra, que te acolhe
num tempo sem saída e te represa,
o meu amor está nos arredores,
nas coisas que te servem de moldura –
e a elas me condeno: amar, insone,

às margens do teu corpo, que transmuda
o tudo quanto vejo em tua imagem,
daqui até o futuro é o que me cabe.



quarta-feira, 11 de julho de 2012

SOSÍGENES COSTA (1901-1968)


Sosígenes Marinho da Costa estreou na imprensa por volta de 1928, em Ilhéus BA, onde foi colaborador do Diário da Tarde. No mesmo ano tornou-se membro da Academia dos Rebeldes, com Pinheiro Viegas, Jorge Amado, Edison Carneiro e Dias da Costa. Na época, trabalhava como professor de instrução primária. No início da década de 1950 foi secretário da Associação Comercial e telegrafista do Departamento de Correios e Telégrafos, em Ilhéus. Em 1959 ocorreu a publicação de seu livro Obra Poética, pelo qual recebeu o Prêmio Jabuti de Poesia, em 1960. Entre 1978 e 1979 foram publicadas a segunda edição, revista e aumentada, de Obra Poética e a póstuma Iararana, por iniciativa de José Paulo Paes. A poesia de Sosígenes Costa vincula-se à segunda geração do Modernismo. Segundo o crítico José Paulo Paes, "a ter como certas as datas de composição das peças enfeixadas na primeira parte da Obra Poética, quando ainda andava acesa a campanha dos modernistas contra o soneto em prol da institucionalização do verso livre, entretinha-se o poeta a escrever seus Sonetos Pavônicos, todos rigorosamente rimados e metrificados, nos quais são perceptíveis traços parnasianos e, sobretudo, simbolistas, ainda que tais sonetos nada tenham de passadistas, caracterizando-se antes por uma modernidade que se patenteia, como a de Quintana, na exploração criativa das possibilidades expressionais dessa forma fixa, então esclerosada pela prática mecânica e abusiva.".






O PAVÃO VERMELHO


Ora, a alegria, este pavão vermelho,
está morando em meu quintal agora.
Vem pousar como um sol em meu joelho
quando é estridente em meu quintal a aurora.

Clarim de lacre, este pavão vermelho
sobrepuja os pavões que estão lá fora.
É uma festa de púrpura. E o assemelho
a uma chama do lábaro da aurora.

É o próprio doge a se mirar no espelho.
E a cor vermelha chega a ser sonora
neste pavão pomposo e de chavelho.

Pavões lilases possuí outrora.
Depois que amei este pavão vermelho,
os meus outros pavões foram-se embora.

***



TORNOU-ME O POR DO SOL
UM NOBRE ENTRE OS RAPAZES


Queima sândalo e incenso o poente amarelo
perfumando a vereda, encantando o caminho.
Anda a tristeza ao longe a tocar violoncelo.
A saudade no ocaso é uma rosa de espinho.

Tudo é doce e esplendente e mais triste e mais belo
e tem ares de sonho e cercou-se de arminho.
Encanto! E eis que já sou o dono de um castelo
de coral com porões de pedra e cor de vinho.

Entre os tanques dos reis, o meu tanque é profundo.
Entre os ases da flora, os meus lírios lilases
meus pavões cor de rosa os únicos do mundo.

E assim sou castelão e a vida fez-se oásis
pelo simples poder, ó por do sol fecundo,
pelo simples poder das sugestões que trazes.

***



PAVÃO AZUL

No jardim do castelo desse bruxo
d’asas d’ouro e olhos verdes de dragão,
tu és à beira de um lilás repuxo
um grande lírio de ouro e de açafrão.

Transformado em pavão por esse bruxo,
vivo te amando em tardes de verão,
dentre as rosas e os pássaros de luxo
do jardim desse bruxo castelão.

Tenho medo que um dia o jardineiro...
Mas nunca estou bem certo, do canteiro
há de colher-te, oh minha flor taful!

Porque ele sabe que em manhã serena
não suportando a ausência da açucena,
há de morrer este pavão azul.







ADELMO OLIVEIRA (1934- )


Adelmo José de Oliveira nasceu em 13 de maio de 1934, na cidade de Itabuna, na Bahia. Em 1962, sob um júri formado por nomes de expressão da literatura brasileira, como Manuel Bandeira, Austregésilo de Athayde, José Carlos Lisboa e Pio de Los Casares, recebeu o Prêmio Nacional Luis de Góngora com o ensaio Góngora e o Sofrimento da Linguagem. Formado em Direito pela Universidade Federal da Bahia, em 1966. Participou do Movimento Cultural baiano escrevendo estudos, ensaios e poesias para os principais jornais e revistas de Salvador. Publicou entre outros títulos: Canto da Hora Indefinida (1960); Três Poemas (1966); O Som dos Cavalos Selvagens (1971); Cântico Para o Deus dos Ventos e das Águas (1987); Espelho das Horas (1991); Canto Mínimo (2000), Poemas da Vertigem (2005); Canto Mínimo e Poemas da Vertigem (2010); Poesia Selecta (org. Gustavo Felicíssimo) – Mondrongo, 2012.. Participou de várias Antologias Poéticas editadas na Bahia, no Sul do País e no Exterior. Exerceu atividade política contra a Ditadura Militar, sendo preso por duas vezes e torturado. Foi eleito Deputado Estadual à Assembleia Legislativa do Estado da Bahia pelo antigo MDB em 1978.








SONETO DA ÚLTIMA ESTAÇÃO
(MITOLOGIA MARINHA)


Esta que vem do mar por entre os ventos,
sacudindo as espumas dos cabelos,
vem molhada de azul nos pensamentos,
seu corpo oculta a ilha dos segredos.

Vem e dança ao andar sobre as areias
úmidas sob os passos e os desejos,
onde as ancas são ondas em cadeias
infinitas de luz contra os espelhos.

Nem precisa de flor nem de perfume,
ela é a própria essência do ciúme,
feita de mito e se fazendo estrela.

Vem – dança – e passa aos fogos do verão
– fantasia da última estação.
explodiu na vertigem da beleza.


***



SONETO ANTIGO DA PAIXÃO


Cheguei depois de mim – Era a viagem
Os pássaros do medo – O fel dos dias
O enigma encarcerado – As travessias
de silêncio no vulto desta imagem

toda sombria friamente lívida
caindo no mistério – Esta paisagem
noturna sob a lua era a miragem
de espectros pelo grito que partia

transverso da garganta de meu peito
– Guitarras que choravam – Contrafeito
me enredei no delírio da ilusão

que apunhalava a dor desta perfídia
ágrafa da manhã – Então morri
– Vi minha alma sangrando de paixão.


***



SONETO DA VISITAÇÃO DO CAOS

                    
ao Miguel Carneiro, amigo e poeta do reino da ficção




Quando eu morrer daqui a dois mil anos
nem queira se lembrar de que vivi
tu sofrerás as penas que sofri
espumas que se quebram pelos oceanos

Quando eu morrer daqui a dois mil anos
tua imagem será a que perdi
a minha dor será a que senti
julgado e condenado pelos desenganos

serei de tudo apenas no meu cérebro
em transe um viajante do Universo
como uma sombra atrás de um pesadelo...

Armagedom !... Armagedom !... Sobre os penhascos
cavalos voam incendiados pelos cascos
ateando fogo nos planetas e nos astros...

PILIGRA (1954- )


O poeta Lorival Pereira Piligra Júnior, nasceu em Itabuna. Possui mestrado em Filosofia pela UFPB (Universidade Federal da Paraíba) e autor do livro Fractais (1996). Seus poemas também podem ser encontrados em várias antologias, entre as quais: Diálogos (1ª e 2ª edições) – panorama da nova poesia grapiúna (Via Litterarum, 2009/2010) e na revista literária Tocaia (Ano I, nº 1: mai-jul, 2012) e sem seu próprio blog: http://kartei.blogspot.com.br





CONCEPÇÃO*

eu já concebo o verso assim metrificado
como arquiteto que planeja um edifício
na exatidão do prumo reto e equilibrado
sem perguntar se isto é fácil ou é difícil…
-
eu já concebo a rima assim – intercalada,
numa urdidura trabalhosa e singular –
puxando o fio de cada sílaba marcada
pelo tecido de uma métrica sem “sem par”!
-
eu já concebo o meu soneto alexandrino
(como a matriz de uma equação vetorial)
fazendo cálculo semântico e verbal
-
com  meu compasso atrapalhado de menino!
eu já concebo o meu poema ornamental,
como operário que dá forma ao que é divino!


***

UM BEIJA-FLOR

um beija-flor pousou na minha poesia
com sutileza como um anjo iluminado,
seu olhar divino me deixou impressionado
- doce metáfora de um verso à luz do dia...

o beija-flor ficou me olhando ali parado,
simples paisagem da mais pura fantasia,
seu olhar de flor brilhou com força e alegria
- jardim suspenso, no meu verso eternizado...

um beija-flor pousou seus pés de sutileza
na minha alma de poeta embrionário,
um filme lírico de amor e de beleza,
tela compondo, como um conto, o meu cenário...

- o beija-flor agora sonha que é um canário
e canta hinos pra alegrar minha tristeza!

***


Velas para a morte

Roubo da noite a negra face envenenada
e luto contra a dor terrível da distância,
deixo em silêncio o medo lírico da infância,
mato de fome a boca insana e renegada...

Mastigo os ossos da soberba e da ganância,
invisto contra a solidão de todo nada,
supero a fúria de uma mente atordoada,
venço o combate contra a trágica arrogância...

Enfrento a Gôrgona no vale dos tormentos,
frente ao destino, digo apenas: “outra vez”,
deito em meu colo a língua de um dragão chinês,
adestro Cérbero e supero os meus lamentos...

- Depois me curvo, simples servo em seu altar,
e “acendo velas para a morte vir rezar...”





*Seleção de poemas sugerida pelo poeta Gustavo Felicíssimo