sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

AUGUSTO DOS ANJOS (1884-1914)

Augusto dos Anjos nasceu no Engenho Pau d'Arco, atualmente no município de Sapé, Estado da Paraíba. Foi educado nas primeiras letras pelo pai e estudou no Liceu Paraibano, onde viria a ser professor em 1908. Precoce poeta brasileiro, compôs os primeiros versos aos sete anos de idade. Em 1903, ingressou no curso de Direito na Faculdade de Direito do Recife, bacharelando-se em 1907. Em 1910 casa-se com Ester Fialho. Seu contato com a leitura, influenciaria muito na construção de sua dialética poética e visão de mundo. Com a obra de Herbert Spencer, teria aprendido a incapacidade de se conhecer a essência das coisas e compreendido a evolução da natureza e da humanidade. De Ernst Haeckel, teria absorvido o conceito da monera como princípio da vida, e de que a morte e a vida são um puro fato químico. Arthur Schopenhauer o teria inspirado a perceber que o aniquilamento da vontade própria seria a única saída para o ser humano. E da Bíblia Sagrada ao qual, também, não contestava sua essência espiritualística, usando-a para contrapor, de forma poeticamente agressiva, os pensamentos remanescentes, em principal os ideais iluministas/materialistas que, endeusando-se, se emergiam na sua época. Essa filosofia, fora do contexto europeu em que nascera, para Augusto dos Anjos seria a demonstração da realidade que via ao seu redor, com a crise de um modo de produção pré-materialista, proprietários falindo e ex-escravos na miséria. O mundo seria representado por ele, então, como repleto dessa tragédia, cada ser vivenciando-a no nascimento e na morte. Dedicou-se ao magistério, transferindo-se para o Rio de Janeiro, onde foi professor em vários estabelecimentos de ensino. Faleceu em 12 de novembro de 1914, às 4 horas da madrugada, aos 30 anos, em Leopoldina, Minas Gerais, onde era diretor de um grupo escolar. A causa de sua morte foi a pneumonia. Durante sua vida, publicou vários poemas em periódicos, o primeiro, Saudade, em 1900. Em 1912, publicou seu livro único de poemas, Eu. Após sua morte, seu amigo Órris Soares organizaria uma edição chamada Eu e Outras Poesias, incluindo poemas até então não publicados pelo autor. A poesia brasileira estava dominada por simbolismo e parnasianismo, dos quais o poeta paraibano herdou algumas características formais, mas não de conteúdo. A incapacidade do homem de expressar sua essência através da "língua paralítica" e a tentativa de usar o verso para expressar da forma mais crua a realidade seriam sua apropriação do trabalho exaustivo com o verso feito pelo poeta parnasiano. A erudição usada apenas para repetir o modelo formal clássico é rompida por Augusto dos Anjos, que se preocupa em utilizar a forma clássica com um conteúdo que a subverte, através de uma tensão que repudia e é atraída pela ciência. A obra de Augusto dos Anjos pode ser dividida, não com rigor, em três fases, a primeira sendo muito influenciada pelo simbolismo e sem a originalidade que marcaria as posteriores. A essa fase pertencem Saudade e Versos Íntimos. A segunda possui o caráter de sua visão de mundo peculiar. Um exemplo dessa fase é o soneto Psicologia de um Vencido. A última corresponde à sua produção mais complexa e madura, que inclui Ao Luar. Sua poesia chocou a muitos, principalmente aos poetas parnasianos, mas hoje é um dos poetas brasileiros que mais foram reeditados. Sua popularidade se deveu principalmente ao sucesso entre as camadas populares brasileiras e à divulgação feita pelos modernistas. Hoje em dia diversas editoras brasileiras publicam edições de Eu e Outras Poesias. A poética EU de Augusto dos Anjos, assentada em bases sólidas do verossímil e da unidade clássica do filósofo Aristóteles, necessita de risco, fazer o que tem de ser feito, no seu projeto fracassado dum novo Cosmos que ressuscita à vida duma nova Roma instaurada noutra nova civilização brasileira frente ao velho mundo. Trata-se duma poética da transgressão que se dá à janela livre da globalização ao unir os povos numa só nação chamada Brasil, por estar à frente de seu tempo e na vanguarda cultural da unidade das nações também à luz da pluralidade, de Paul Feyerabend. Nem é à toa que no livro A poética carnavalizada de augusto dos anjos o crítico constate como em todo o EU e no soneto “Vencedor” há um poeta atormentado em instaurar uma nova civilização brasileira que assombrará o mundo por meio de seu novo estatuto dado à palavra feia e federonta como a cloaca que alimenta à hiena, animal desvairado que ainda assim sorrir. Palavra esdrúxula e excêntrica essa que arromba as portas da unidade clássica à literatura universal por meio de sua poética da pluralidade, da transgressão, ordinária e inclassificável. A festa da carne é resultado da Recepção e transgressão: o público de Augusto dos Anjos outra pesquisa científica desenvolvida por meio de Engenharia da Informação na mídia e na net dando acesso a aproximados 10.064.090 milhões de registros e referências crítico-literárias só no Google, dentre outros levantados pelo pesquisador e autor da página eletrônica sob a URL http://montgomeryvasconcelos.zip.net nos quais a poesia e a prosa do poeta paraibano apresentam a face negra de Brasil, o signo da corrupção, divulgando críticas como.  Muitas divergências há entre os críticos de Augusto dos Anjos quanto à apreciação de sua obra e suas posições são geralmente extremas. De qualquer forma, seja por ácidas críticas destrutivas, seja através de entusiasmos exaltados de sua obra poética, Augusto dos Anjos está longe de se passar despercebido na literatura brasileira. O aspecto melancólico da sua poesia, que a marca profundamente, é interpretado de diversas maneiras. Uma vertente de críticos, na qual se inclui Ferreira Gullar, fundamenta a melancolia da obra na biografia do homem Augusto dos Anjos. Para Gullar, as condições de nossa cultura dependente dificultam uma expressão literária como a de Augusto dos Anjos, em que se rompe com a imitação extemporânea da literatura européia. Essa ruptura de Augusto dos Anjos ter-se-ia dado menos por uma crítica à literatura do que por uma visão existencial, fruto de sua experiência pessoal e temperamento, que tentou expressar na forma de poesia. A poesia de Augusto dos Anjos é caracterizada por Gullar como apresentando aspectos da poesia moderna: vocabulário prosaico misturado a termos poéticos e científicos; demonstração dos sentimentos e dos fenômenos não através de signos abstratos, mas de objetos e ações cotidianas; a adjetivação e situações inusitadas, que transmitem uma sensação de perplexidade. Ele compara a miscigenação de vocabulário popular com termos eruditos do poeta ao mesmo uso que faz Graciliano Ramos. Descreve ainda os recursos estilísticos pelos quais Augusto dos Anjos tematiza a morte, que é personagem central de sua poesia, e o compara a João Cabral de Melo Neto, para quem a morte é apresentada de forma crua e natural.





VOZES DA MORTE


Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!

Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
E a podridão, meu velho! E essa futura
Ultrafatalidade de ossatura,
A que nos acharemos reduzidos!

Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,

Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte inda teremos filhos!



***


OS DOENTES


I
 
Como uma cascavel que se enroscava
A cidade dos lázaros dormia...
Somente, na metrópole vazia,
Minha cabeça autônoma pensava!

Mordia-me a obsessão má de que havia,
Sob os meus pés, na terra onde eu pisava,
Um fígado doente que sangrava
E uma garganta de órfã que gemia!

Tentava compreender com as conceptivas
Funções do encéfalo as substâncias vivas
Que nem Spencer, nem Haeckei compreenderam. . .

E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de biliões de raças
Que há muitos anos desapareceram!


 
II
 
Minha angústia feroz não tinha nome.
Ali, na urbe natal do desconsolo,
Eu tinha de comer o último bolo
Que Deus fazia para a minha fome!

Convulso, o vento entoava um pseudopsalmo.
Contrastando, entretanto, com o ar convulso
A noite funcionava como um pulso
Fisiologicamente muito calmo.

Caíam sobre os meus centros nervosos,
Como os pingos ardentes de cem velas,
O uivo desenganado das cadelas
E o gemido dos homens bexigosos.

Pensava! E em que eu pensava, não perguntes!
Mas, em cima de um túmulo, um cachorro
Pedia para mim água e socorro
A comiseração dos transeuntes!

Bruto, de errante rio, alto e hórrido, o urro
Reboava. Além jazia aos pés da serra,
Creando as superstições de minha terra,
A queixada específica de um burro!

Gordo adubo da agreste urtiga brava,
Benigna água, magnânima e magnífica,
Em cuja álgida unção, branda e beatifica,
A Paraíba indígena se lava!

A manga, a ameixa, a amêndoa, a abóbora, o álamo
E a câmara odorífera dos sumos
Absorvem diariamente o ubérrimo húmus
Que Deus espalha à beira do teu tálamo!

Nos de teu curso desobstruídos trilhos,
Apenas eu compreendo, em quaisquer horas,
O hidrogênio e o oxigênio que tu choras
Pelo falecimento dos teus filhos!

Ah! Somente eu compreendo, satisfeito,
A incógnita psiquê das massas mortas
Que dormem, como as ervas, sobre as hortas,
Na esteira egualitária do teu leito!

O vento continuava sem cansaço
E enchia com a fluidez do eólico hissope
Em seu fantasmagórico galope
A abundância geométrica do espaço.


Meu ser estacionava, olhando os campos
Circunjacentes. No Alto, os astros miúdos
Reduziam os Céus sérios e rudos
A uma epiderme cheia de sarampos!


 
III
 
Dormia em baixo, com a promíscua véstia
No embotamento crasso dos sentidos,
A comunhão dos homens reunidos
Pela camaradagem da moléstia.

Feriam-me o nervo óptico e a retina
Aponevroses e tendões de Aquiles,
Restos repugnantíssimos de bílis,
Vômitos impregnados de ptialina.

Da degenerescência étnica do Ária
Se escapava, entre estrépitos e estouros
Reboando pelos séculos vindouros,
O ruído de uma tosse hereditária.

Oh! desespero das pessoas tísicas,
Adivinhando o frio que há nas lousas,
Maior felicidade é a destas cousas
Submetidas apenas às leis físicas!

Estas, por mais que os cardos grandes rocem
Seus corpos brutos, dores não recebem;
Estas dos bacalhaus o óleo não bebem
Estas não cospem sangue, estas não tossem!

Descender dos macacos catarríneos,
Cair doente e passar a vida inteira
Com a boca junto de uma escarradeira,
Pintando o chio de coágulos sanguíneos!

Sentir, adstrictos ao quimiotropismo
Erótico, os micróbios assanhados
Passearem, como inúmeros soldados,
Nas cancerosidades do organismo!

Falar somente uma linguagem rouca,
Um português cansado e incompreensível,
Vomitar o pulmão na noite horrível
Em que se deita sangue pela boca!

Expulsar, aos bocados, a existência
Numa bacia autômata de barro,
Alucinado, vendo em cada escarro
O retrato da própria consciência!

Querer dizer a angústia de que é pábulo,
E com a respiração já muito fraca
Sentir como que a ponta de uma faca,
Cortando as raízes do último vocábulo!

Não haver terapêutica que arranque
Tanta opressão como se, com efeito
Lhe houvessem sacudido sobre o peito
A máquina pneumática de Bianchi!

E o ar fugindo e a Morte a arca da tumba
A erguer, como um cronômetro gigante,
Marcando a transição emocionante
Do lar materno para a catacumba!

Mas vos não lamenteis, magras mulheres,
Nos ardores danados da febre hética,
Consagrando vossa última fonética
A uma recitação de misereres.



Antes levardes ainda uma quimera
Para a garganta omnívora das lajes
Do que morrerdes, hoje, urrando ultrajes
Contra a dissolução que vos espera!

Porque a morte, resfriando-vos o rosto,
Consoante a minha concepção vesânica,
É a alfândega, onde toda a vida orgânica
Há de pagar um dia o último imposto!

 
IV
 
Começara a chover. Pelas algentes
Ruas, a água, em cachoeiras desobstruídas,
Encharcava os buracos das feridas,
Alagava a medula dos Doentes!

Do fundo do meu trágico destino,
Onde a Resignação os braços cruza,
Saía, com o vexame de uma fusa,
A mágoa gaguejada de um cretino.

Aquele ruído obscuro de gagueira
Que à noite, em sonhos mórbidos, me acorda.
Vinha da vibração bruta da corda
Mais recôndita da alma brasileira!

Aturdia-me a tétrica miragem
De que, naquele instante, no Amazonas,
Fedia, entregue a vísceras glutonas,
A carcaça esquecida de um selvagem.

A civilização entrou na taba
Em que ele estava. O gênio de Colombo
Manchou de opróbrios a alma do mazombo,
Cuspiu na cova do morubixaba!

E o índio, por fim, adstricto à étnica escória,
Recebeu, tendo o horror no rosto impresso,
Esse achincalhamento do progresso
Que o anulava na crítica da História!

Como quem analisa um. apostema,
De repente, acordando na desgraça,
Viu toda a podridão de sua raça...
Na tumba de Iracema! ...

Ah! Tudo, como um lúgubre ciclone,
Exercia sobre ele ação funesta
Desde o desbravamento da floresta
A ultrajante invenção do telefone.

E sentia-se pior que um vagabundo
Microcéfalo vil que a espécie encerra
Desterrado na sua própria terra,
Diminuído na crônica do mundo!

A hereditariedade dessa pecha
Seguiria seus filhos. Dora em deante
Seu povo tombaria agonizante
Na luta da espingarda com a flecha!

Veio-lhe então como à fêmea vem antojos,
Uma desesperada ânsia improfícua
De estrangular aquela gente iníqua,
Que progredia sobre os seus despojos!

Mas, deante a xantocróide raça loura,
Jazem, caladas, todas as inúbias,
E agora, sem difíceis nuanças dúbias,
Com uma clarividência aterradora,

Em vez da prisca tribo e indiana tropa
A gente deste século, espantada,
Vê somente a caveira abandonada
De uma raça esmagada pela Europa!  
V
 
Era a hora em que arrastados pelos ventos,
Os fantasmas hamléticos dispersos
Atiram na consciência dos perversos
A sombra dos remorsos famulentos.

As mães sem coração rogavam pragas
Aos filhos bons. E eu, roído pelos medos,
Batia com o pentágono dos dedos
Sobre um fundo hipotético de chagas!

Diabólica dinâmica daninha
Oprimia meu cérebro indefeso
Com a força onerosíssima de um peso
Que eu não sabia mesmo de onde vinha.

Perfurava-me o peito a áspera pua
Do desânimo negro que me prostra,
E quase a todos os momentos mostra
Minha caveira aos bêbedos da rua.

Hereditariedades politípicas
Punham na minha boca putrescível
Interjeições de abracadabra horrível
E os verbos indignados das Filípicas.

Todos os vocativos dos blasfemos,
No horror daquela noite monstruosa,
Maldiziam, com voz estentorosa,
A peçonha inicial de onde nascemos.

Como que havia na ânsia de conforto
De cada ser, ex.: o homem e o ofídio,
Uma necessidade de suicídio
E um desejo incoercível de ser morto!

Naquela angústia absurda e tragicômica
Eu chorava, rolando sobre o lixo,
Com a contorção neurótica de um bicho
Que ingeriu 30 gramas de nux-vômica.

E, como um homem doido que se enforca,
Tentava, na terráquea superfície,
Consubstandar-me todo com a imundície,
Confundir-me com aquela coisa porca!

Vinha, às vezes, porém, o anelo instável
De, com o auxílio especial do osso masséter
Mastigando homeomérias neutras de éter
Nutrir-me da matéria imponderável.

Anelava ficar um dia, em suma,
Menor que o anfióxus e inferior à tênia,
Reduzido à plastídula homogênea,
Sem diferenciação de espécie alguma.

Era (nem sei em síntese o que diga)
Um velhíssimo instinto atávico, era
A saudade inconsciente da monera
Que havia sido minha mãe antiga!

Com o horror tradicional da raiva corsa
Minha vontade era, perante a cova,
Arrancar do meu próprio corpo a prova
Da persistência trágica da força.

A pragmática má de humanos usos
Não compreende que a Morte que não dorme
É a obsorção do movimento enorme
Na dispersão dos átomos difusos.

Não me incomoda esse último abandono.
Se a carne individual hoje apodrece,
Amanhã, como Cristo, reaparece
Na universalidade do carbono!


A vida vem do éter que se condensa,
Mas o que mais no Cosmos me entusiasma
É a esfera microscópica do plasma
Fazer a luz do cérebro que pensa.

Eu voltarei, cansado da árdua liça,
A substância inorgânica primeva,
De onde, por epigênesis, veio Eva
E a stirpe radiolar chamada Actissa!

Quando eu for misturar-me com as violetas,
Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra,
Reviverá, dando emoção à pedra,
Na acústica de todos os planetas!


 
VI
 
À álgida agulha, agora, alva, a saraiva
Caindo, análoga era... Um cão agora
Punha a atra língua hidrófoba de fora
Em contracções miológicas de raiva.

Mas, para além, entre oscilantes chamas,
Acordavam os bairros da luxúria...
As prostitutas, doentes de hematúria,
Se extenuavam nas camas.

Uma, ignóbil, derreada de cansaço,
Quase que escangalhada pelo vício,
Cheirava com prazer no sacrifício
A lepra má que lhe roía o braço!

E, ensangüentava os dedos da mão nívea
Com o sentimento gasto e a emoção pobre,
Nessa alegria bárbara que cobre
Os saracoteamentos da lascívia...

De certo, a perversão de que era presa
O sensorium daquela prostituta
Vinha da adaptação quase absoluta
À ambiência microbiana da baixeza!

Entanto, virgem fostes, e, quando o éreis,
Não tínheis ainda essa erupção cutânea,
Nem tínheis, vítima última da insânia,
Duas mamárias glândulas estéreis!

Ah! Certamente, não havia ainda
Rompido, com violência, no horizonte,
O sol malvado que secou a fonte
De vossa castidade agora finda!

Talvez tivésseis fome, e as mãos, embalde,
Estendestes ao mundo, até que, à toa,
Fostes vender a virginal coroa
Ao primeiro bandido do arrabalde.

E estais velha! — De vós o mundo é farto,
E hoje, que a sociedade vos enxota,
Somente as bruxas negras da derrota
Freqüentam diariamente vosso quarto!

Prometem-vos. (quem sabe?!) entre os ciprestes
Longe, da mancebia dos alcouces,
Nas quietudes nirvânicas mais doces.
O noivado que em vida não tivestes!

 
VII
 
Quase todos os lutos conjugados,
Como, uma associação de monopólio,
Lançavam pinceladas pretas de óleo
Na arquitetura arcaica dos sobrados.
Dentro da noite funda um braço humano
Parecia cavar ao longe um poço
Para enterrar minha ilusão de moço,
Como a boca de um poço artesiano!

Atabalhoadamente pelos becos,
Eu pensava nas coisas que perecem.
Desde as musculaturas que apodrecem
À ruína vegetal dos lírios secos.

Cismava no propósito funéreo
Da mosca debochada que fareja
O defunto, no chão frio da igreja,
E vai depois levá-lo ao cemitério!

E esfregando as mãos magras, eu, inquieto,
Sentia, na craniana caixa tosca,
A racionalidade dessa mosca,
A consciência terrível desse inseto!

Regougando, porém, argots e aljâmias,
Como quem nada encontra que o perturbe,
A energúmena grei dos ébrios da urbe
Festejava seu sábado de infâmias.

A estática fatal das paixões cegas,
Rugindo fundamente nos neurônios,
Puxava aquele povo de demônios
Para a promiscuidade das adegas.

E a ébria turba que escaras sujas masca,
A falta idiosincrásica de escrúpulo,
Absorvia com gáudio absinto, lúpulo
E outras substâncias tóxicas da tasca.

O ar ambiente cheirava a ácido acético,
Mas, de repente, com o ar de quem empesta,
Apareceu, escorraçando a festa,
A mandíbula inchada de um morfético!

Saliências polimórficas vermelhas,
Em cujo aspecto o olhar perspícuo prendo,
Punham-lhe num destaque horrendo o horrendo
Tamanho aberratório das orelhas.

O fácies do morfético assombrava!
— Aquilo era uma negra eucaristia,
Onde minh'alma inteira surpreendia
A Humanidade que se lamentava!

Era todo o meu sonho, assim, inchado,
Já podre, que a morféa miserável
Tornava às impressões tactis, palpável,
Como se fosse um corpo organizado!


VIII
 
Em torno a mim, nesta hora, estriges voam,
E o cemitério, em que eu entrei adrede,
Dá-me a impressão de um boulevard que fede
Pela degradação dos que o povoam.

Quanta gente, roubada à humana coorte,
Morre de fome, sobre a palha espessa,
Sem ter, como Ugolino, uma cabeça
Que possa mastigar na hora da morte;

E nua, após baixar ao caos budista,
Vem para aqui, nos braços de um canalha,
Porque o madapolão para a mortalha
Custa 1 200 ao lojista!

Que resta das cabeças que pensaram?!
E afundado nos sonhos mais nefastos,
Ao pegar num milhão de miolos gastos,
Todos os meus cabelos se arrepiaram.


Os evolucionismos benfeitores
Que por entre os cadáveres caminham,
Iguais a irmãs de caridade, vinham
Com a podridão dar de comer às flores!

Os defuntos então me ofereciam
Com as articulações das mãos inermes,
Num prato de hospital, cheio de vermes,
Todos os animais que apodreciam!

É possível que o estômago se afoite
(Muito embora contra isto a alma se irrite)
A cevar o antropófago apetite,
Comendo carne humana, à meia-noite!

Com uma ilimitadíssima tristeza,
Na impaciência do estômago vazio,
Eu devorava aqueje bolo frio
Feito das podridões da Natureza!

E hirto, a camisa suada, a alma aos arrancos.
Vendo passar com as túnicas obscuras,
As escaveiradíssimas figuras
Das negras desonradas pelos brancos;

Pisando, como quem salta, entre fardos,
Nos corpos nus das moças hotentotes
Entregues, ao clarão de alguns archotes,
A sodomia indigna dos moscardos;

Eu maldizia o deus de mãos nefandas
Que, transgredindo a egualitária regra
Da Natureza, atira a raça negra
Ao contubérnio diário das quitandas!

Na evolução de minha dor grotesca,
Eu mendigava aos vermes insubmissos
Como indenização dos meus serviços,
O benefício de uma cova fresca.

Manhã. E eis-me a absorver a luz de fora,
Como o íncola do pólo ártico, às vezes,
Absorve, após a noite de seis meses,
Os raios caloríficos da aurora.

Nunca mais as goteiras cairiam
Como propositais setas malvadas,
No frio matador das madrugadas,
Por sobre o coração dos que sofriam!

Do meu cérebro à absconsa tábua rasa
Vinha a luz restituir o antigo crédito,
Proporcionando-me o prazer inédito,
De quem possui um sol dentro de casa.

Era a volúpia fúnebre que os ossos
Me inspiravam, trazendo-me ao sol claro,
À apreensão fisiológica do faro
O odor cadaveroso dos destroços!


 IX
 
O inventário do que eu já tinha sido
Espantava. Restavam só de Augusto
A forma de um mamífero vetusto
E a cerebralidade de um vencido!

O gênio procreador da espécie eterna
Que me fizera, em vez de hiena ou lagarta,
Uma sobrevivência de Sidarta,
Dentro da filogênese moderna;

E arrancara milhares de existências
Do ovário ignóbil de uma fauna imunda,
Ia arrastando agora a alma infecunda
Na mais triste de todas as falências.

Um céu calamitoso de vingança
Desagregava, déspota e sem normas,
O adesionismo biôntico das formas
Multiplicadas pela lei da herança!

A ruína vinha horrenda e deletéria
Do subsolo infeliz, vinha de dentro
Da matéria em fusão que ainda há no centro,
Para alcançar depois a periferia!

Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos
Decompondo-se desde os alicerces!

A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstracto que não morre
Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,
Parecia também desagregar-se!

Os pródromos de um tétano medonho
Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,
Eu sentia nascer-me n'alma, entanto,
O começo magnífico de um sonho!

Entrem formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo!

O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva nocturna,
O vagido de uma outra Humanidade!

E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazos secreto,
A gestação daquele grande feto, 
Que vinha substituir a Espécie Humana!
  


***



MONÓLOGO DE UMA SOMBRA

«Sou uma Sombra! Venho de outras eras, 
Do cosmopolitismo das moneras... 
Pólipo de recônditas reentrâncias, 
Larva de caos telúrico, procedo 
Da escuridão do cósmico segredo, 
Da substância de todas as substâncias! 

A simbiose das coisas me equilibra. 
Em minha ignota mônada, ampla, vibra 
A alma dos movimentos rotatórios... 
E é de mim que decorrem, simultâneas, 
A saúde das forças subterrâneas 
E a morbidez dos seres ilusórios! 

Pairando acima dos mundanos tectos, 
Não conheço o acidente da Senectus 
— Esta universitária sanguessuga , 
Que produz, sem dispêndio algum de vírus, 
O amarelecimento do papirus 
E a miséria anatômica da ruga! 

Na existência social, possuo uma arma 
— O metafisicismo de Abidarma — 
E trago, sem bramânicas tesouras, 
Como um dorso de azêmola passiva, 
A solidariedade subjetiva 
De todas as espécies sofredoras. 

Com um pouco de saliva quotidiana 
Mostro meu nojo à Natureza Humana. 
A podridão me serve de Evangelho... 
Amo o esterco, os resíduos ruins dos quiosques 
E o animal inferior que urra nos bosques 
E com certeza meu irmão mais velho! 

Tal qual quem para o próprio túmulo olha, 
Amarguradamente se me antolha, 
À luz do americano plenilúnio, 
Na alma crepuscular de minha raça 
Como uma vocação para a Desgraça 
E um tropismo ancestral para o Infortúnio. 

Aí vem sujo, a coçar chagas plebéias, 
Trazendo no deserto das idéias 
O desespero endêmico do inferno, 
Com a cara hirta, tatuada de fuligens 
Esse mineiro doido das origens, 
Que se chama o Filósofo Moderno! 

Quis compreender, quebrando estéreis normas, 
A vida fenomênica das Formas, 
Que, iguais a fogos passageiros, luzem... 
E apenas encontrou na idéia gasta, 
O horror dessa mecânica nefasta, 
A que todas as cousas se reduzem! 


E hão de achá-lo, amanhã, bestas agrestes, 
Sobre a esteira sarcófaga das pestes 
A mostrar, já nos últimos momentos, 
Como quem se submete a uma charqueada, 
Ao clarão tropical da luz danada, 
espólio dos seus dedos peçonhentos. 

Tal a finalidade dos estames! 
Mas ele viverá, rotos os liames 
Dessa estranguladora lei que aperta 
Todos os agregados perecíveis, 
Nas eterizações indefiníveis 
Da energia intra-atômica liberta! 

Será calor, causa úbiqua de gozo, 
Raio X, magnetismo misterioso, 
Quimiotaxia, ondulação aérea, 
Fonte de repulsões e de prazeres, 
Sonoridade potencial dos seres, 
Estrangulada dentro da matéria! 

E o que ele foi: clavículas, abdômen, 
O coração, a boca, em síntese, o Homem, 
— Engrenagem de vísceras vulgares — 
Os dedos carregados de peçonha, 
Tudo coube na lógica medonha 
Dos apodrecimentos musculares! 

A desarrumação dos intestinos 
Assombra! Vede-a! Os vermes assassinos 
Dentro daquela massa que o húmus come, 
Numa glutoneria hedionda, brincam, 
Como as cadelas que as dentuças trincam 
No espasmo fisiológico da fome. 

É uma trágica festa emocionante! 
A bacteriologia inventariante 
Toma conta do corpo que apodrece ... 
E até os membros da família engulham, 
Vendo as larvas malignas que se embrulham 
No cadáver malsão, fazendo um s. 

E foi então para isto que esse doudo 
Estragou o vibrátil plasma todo, 
À guisa de um faquir, pelos cenóbios?! ... 
Num suicídio graduado, consumir-se, 
E após tantas vigílias, reduzir-se 
A herança miserável de micróbios! 

Estoutro agora é o sátiro peralta 
Que o sensualismo sodomista exalta, 
Nutrindo sua infâmia a leite e a trigo. 
Como que, em suas células vilíssimas, 
Há estratificações requintadíssimas 
De uma animalidade sem castigo. 

Brancas bacantes bêbedas o beijam. 
Suas artérias hírcicas latejam, 
Sentindo o odor das carnações abstêmias, 
E à noite, vai gozar, ébrio de vício, 
No sombrio bazar do meretrício, 
O cuspo afrodisíaco das fêmeas. 

No horror de sua anômala nevrose, 
Toda a sensualidade da simbiose, 
Uivando, à noite, em lúbricos arroubos, 
Como no babilônico sansara, 
Lembra a fome incoercível que escancara 
A mucosa carnívora dos lobos. 

Sôfrego, o monstro as vítimas aguarda. 
Negra paixão congênita, bastarda, 
Do seu zooplasma ofídico resulta... 
E explode, igual à luz que o ar acomete, 
Com a veemência mavórtica do ariete 
E os arremessos de uma catapulta. 

Mas muitas vezes, quando a noite avança, 
Hirto, observa através a tênue trança 
Dos filamentos fluídicos de um halo 
A destra descarnada de um duende, 
Que, tateando nas tênebras, se estende 
Dentro da noite má, para agarrá-lo! 

Cresce-lhe a intracefálica tortura, 
E de su'alma na caverna escura, 
Fazendo ultra-epilépticos esforços, 
Acorda, com os candieiros apagados, 
Numa coreografia de danados, 
A família alarmada dos remorsos. 

E o despertar de um povo subterrâneo! 
É a fauna cavernícola do crânio 
— Macbeths da patológica vigília, 
Mostrando, em rembrandtescas telas várias, 
As incestuosidades sanguinárias 
Que ele tem praticado na família. 

As alucinações tácteis pululam. 
Sente que megatérios o estrangulam... 
A asa negra das moscas o horroriza; 
E autopsiando a amaríssirna existência 
Encontra um cancro assíduo na consciência 
E três manchas de sangue na camisa! 

Míngua-se o combustível da lanterna 
E a consciência do sátiro se inferna, 
Reconhecendo, bêbedo de sono, 
Na própria ânsia dionísica do gozo, 
Essa necessidade de horroroso, 
Que é talvez propriedade do carbono! 

Ah! Dentro de toda a alma existe a prova 
De que a dor como um dartro se renova, 
Quando o prazer barbaramente a ataca... 
Assim também, observa a ciência crua, 
Dentro da elipse ignívoma da lua 
A realidade de uma esfera opaca. 

Somente a Arte, esculpindo a humana mágoa, 
Abranda as rochas rígidas, torna água 
Todo o fogo telúrico profundo 
E reduz, sem que, entanto, a desintegre, 
A condição de uma planície alegre, 
A aspereza orográfica do mundo! 

Provo desta maneira ao mundo odiento 
Pelas grandes razões do sentimento, 
Sem os métodos da abstrusa ciência fria 
E os trovões gritadores da dialética, 
Que a mais alta expressão da dor estética 
Consiste essencialmente na alegria. 

Continua o martírio das criaturas: 
— O homicídio nas vielas mais escuras, 
— O ferido que a hostil gleba atra escarva, 
— O último solilóquio dos suicidas — 
E eu sinto a dor de todas essas vidas 
Em minha vida anônima de larva!» 

Disse isto a Sombra. E, ouvindo estes vocábulos, 
Da luz da lua aos pálidos venábulos, 
Na ânsia de um nervosíssimo entusiasmo, 
julgava ouvir monótonas corujas, 
Executando, entre caveiras sujas, 
A orquestra arrepiadura do sarcasmo! 

Era a elegia panteísta do Universo, 
Na podridão do sangue humano imerso, 
Prostituído talvez, em suas bases... 
Era a canção da Natureza exausta, 
Chorando e rindo na ironia infausta 
Da incoerência infernal daquelas frases. 

E o turbilhão de tais fonemas acres 
Trovejando grandíloquos massacres, 
Há-de ferir-me as auditivas portas, 
Até que minha efêmera cabeça 
Reverta à quietação da treva espessa 
E à palidez das fotosferas mortas! 

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