quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

RAUL DE LEONI (1895-1926)

Raul de Leoni  obteve estudos críticos de Agrippino Grieco, Rodrigo Melo Franco de Andrade, Medeiros de Albuquerque, Alceu Amoroso Lima, Ronald de Carvalho, Manuel Bandeira, Afonso Arinos de Melo Franco, Tasso da Silveira e Sergio Milliet. Foi o poeta de maior realce na última fase do simbolismo, e justamente considerado como uma das figuras mais notáveis do soneto brasileiro de todos os tempos. Parnasianos, simbolistas e até modernistas o têm em alta conta, apreciando-o sem reservas. Cada um de seus versos tem sonoridade e ritmo primorosos, especialmente os dos sonetos, em decassílabos, mesclados de simbolismo e de modernismo, com tessitura clássica e técnica parnasiana. São versos considerados dos mais perfeitos: em idéia, filosofia, e essência das temáticas. Porém, a mesma unanimidade não tem a crítica ao situar o poeta, em diferentes julgamentos, onde foi colocado nas escolas e posições poéticas as mais diferentes e contraditórias. Enquanto alguns dos seus críticos o consideram um genuíno parnasiano, outros enxergam nele o simbolista autêntico, terceiros acreditam ter sido um neo-parnasiano e outros o situam num grupo completamente independente das regras poéticas e influências de escolas e movimentos literários. O seu ritmo peculiar e admirável de versificação, o conjunto de idéias sublimes de suas palavras, são os aspectos mais fortes que envolvem a magnífica harmonia da unidade de pensamento que existe em toda sua obra. Raul de Leoni é poeta de grandeza solitária, unindo a uma filosofia panteística um espírito helênico de poesia ligada ao canto e a música. Apesar de apontarem em seus versos Pascal e Platão, sua poesia nada tem de filosófica. É espontânea, colorida, sensual. Sua estética à maneira platônica leva-o a uma vizinhança extraordinária com o Simbolismo, sendo, tanto quanto Guimarães Passos um grande poeta de transição. Todavia a crítica literária brasileira é unânime em assinalar a alta linhagem clássica da poesia de Raul de Leoni, fundada na homogeneidade da sua primazia gramatical, temática e métrica, e consolidada no seu bom gosto literário, reconhecidos como impecáveis, desde a sua época até os dias atuais. A sua poesia embora contenha formas antigas e clássicas, é caracterizada por um imperecível espírito de modernidade, o que lhe assegura compreensão ilimitada e aperiódica, e o introduz na seleta plêiade dos poetas imortais. De todos os poetas brasileiros, de qualquer escola onde existissem regras poéticas, incluindo os independentes, o único que não sofreu sequer um sopro de menosprezo do assíduo fôlego da "corrente modernista brasileira" foi Raul de Leoni. Seus sonetos, de métricas perfeitas, repletos de metáforas e de concepções filosóficas extraordinárias, corriam nos cadernos de poesia dos moços e moças da época, que compreendiam aqueles versos de palavras doces, que continham, ao mesmo tempo, tanta simplicidade e tanto esclarecimento.




DESCONFIANDO

Tu pensas como eu penso, vês se eu vejo,
Atento tu me escutas quando falo;
Bem antes que te exponha o meu desejo
Já pronto estás correndo a executá-lo.

Achas em tudo um venturoso ensejo
De servir-me de servo e de vassalo;
Perdoa-me a verdade num gracejo.
Serias, se eu quisesse, o meu cavalo...

Mas não penses que estólido eu te creia
Como um Patroclo abnegado, não:
De todos os excessos se receia...

O certo é que, em rancor, por dentro estalas;
Odeias-me, que eu sei, mas, histrião,
Beijas-me as mãos por não poder cortá-las...

***

ARGILA


Nascemos um para o outro, dessa argila
De que são feitas as criaturas raras;
Tens legendas pagãs nas carnes claras
E eu tenho a alma dos faunos na pupila...

Às belezas heróicas te comparas
E em mim a luz olímpica cintila,
Gritam em nós todas as nobres taras
Daquela Grécia esplêndida e tranquila...

É tanta a glória que nos encaminha
Em nosso amor de seleção, profundo,
Que (ouço ao longe o oráculo de Elêusis)

Se um dia eu fosse teu e fosses minha,
O nosso amor conceberia um mundo
E do teu ventre nasceriam deuses...

***

CANÇÃO DE TODOS


Duas almas deves ter...
É um conselho dos mais sábios;
Uma, no fundo do Ser,
Outra, boiando nos lábios!

Uma, para os circunstantes,
Solta nas palavras nuas
Que inutilmente proferes,
Entre sorrisos e acenos:
A alma volúvel da ruas,
Que a gente mostra aos passantes,
Larga nas mãos das mulheres,
Agita nos torvelinhos,
Distribui pelos caminhos
E gasta sem mais nem menos,
Nas estradas erradias,
Pelas horas, pelos dias...

Alma anônima e usual,
Longe do Bem e do Mal,
Que não é má nem é boa,
Mas, simplesmente, ilusória,

Ágil, sutil, diluída,
Moeda falsa da Vida,
Que vale só porque soa,
Que compra os homens e a glória
E a vaidade que reboa
Alma que se enche e transborda,
Que não tem porquê nem quando,
Que não pensa e não recorda,
Não ama, não crê, não sente,
Mas vai vivendo e passando
No turbilhão da torrente,
Través intrincadas teias,
Sem prazeres e sem mágoas.
Fugitiva como as águas,
Ingrata como as areias.

Alma que passa entre apodos
Ou entre abraços, sorrindo,
Que vem e vai, vai e vem,
Que tu emprestas a todos,
Mas não pertence a ninguém.
Salamandra furta-cor,
Que muda ao menor rumor
Das folhas pelas devesas;
Alma que nunca se exprime,
Que é uma caixa de surpresas
Nas mãos dos homens prudentes;
Alma que é talvez um crime,
Mas que é uma grande defesa.

A outra alma, pérola rara,
Dentro da concha tranqüila,
Profunda, eterna e tão cara
Que poucos podem possuí-la,
É alma que nas entranhas
Da tua vida murmura
Quando paras e repousas.
A que assiste das Montanhas
As livres desenvolturas
Do panorama das cousas

Para melhor conhecê-las
E jamais comprometê-las,
Entre perdões e doçuras,
Num pudor silencioso,
Com o mesmo olhar generoso,
Com que contempla as estrelas
E assiste o sonho das flores...

Alma que é apenas tua,
Que não te trai nem te engana,
Que nunca se desvirtua,
Que é voz do mundo em surdina.
Que é a semente divina

Da tua têmpera humana,
Alma que só se descobre
Para uma lágrima nobre,
Para um heroísmo afetivo,
Nas íntimas confidências
De verdade e de beleza:

Milagre da natureza
Transcorrendo em reticências
Num sonho límpido e honesto,
De idealidade suprema,
Ora, aflorando num gesto,
Ora, subindo num poema.

Fonte do Sonho, jazida
Que se esconde aos garimpeiros,
Guardando, em fundos esteiros,
O ouro da tua Vida.

Alma de santo e pastor,
De herói, de mártir e de homem;
A redenção interior
Das forças que te consomem,
A legenda e o pedestal
Que se aprofunda e se agita
Da aspiração infinita
No teu ser universal.

Alma profunda e sombria,
Que ao fechar-se cada dia,
Sob o silêncio fecundo
Das horas graves e calmas,
Te ensina a filosofia
Que descobriu pelo mundo,
Que aprendeu nas outras almas

Duas almas tão diversas
Como o poente das auroras:
Uma, que passa nas horas;
Outra, que fica no tempo.

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