segunda-feira, 1 de outubro de 2012

CORA CORALINA (1889-1995)

Batizada Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, é um dos grandes patrimônios culturais de Goiás. Sua obra tardia, impõe-se por sua singeleza e autenticidade, na figura confessional de Aninha, em testemunhos de vívida e emocionante prosa poética: transumante de uma exemplaridade altruísta e otimista. Sofrida pelos preconceitos de seu tempo, pelas limitações de sua existência, cultivou um saudosismo sem pieguismo, certa de que os tempos atuais “são infinitamente melhores”, em sua crença na contemporaneidade e no futuro, não obstante as mazelas que soube apontar e denunciar. Estive com ela, em sua casa da ponte, na altiva Villa-Boa de Goyaz, uma única e inesquecível oportunidade, no final da década de 70, época em que prestava serviços às bibliotecas da Universidade Federal de Goiás. Por certo, foi minha amiga escritora e bibliotecária Marietta Telles Machado quem me cedeu os primeiros textos da poet(is)a e facilitou o meu encontro com ela. De lá para cá, Cora Coralina mereceu as honras de primeira-dama da poesia, em Goiás no restante do Brasil, desde que Carlos Drummond de Andrade atestou o seu indiscutível talento. Por sorte, ainda em vida. Entre muitas de suas obras, encontram-se: Estórias da Casa Velha da Ponte (contos), Poemas dos Becos de Goiás e estórias mais (poesia), Meninos Verdes (infantil), Meu Livro de Cordel, O Tesouro da Casa Velha, A Moeda de Ouro que o Pato Engoliu (infantil), Vintém de Cobre, As Cocadas (infantil)...






ANTIGÜIDADES

Quando eu era menina
bem pequena,
em nossa casa,
certos dias da semana
se fazia um bolo,
assado na panela
com um testo de borralho em cima.

Era um bolo econômico,
como tudo, antigamente.
Pesado, grosso, pastoso.
(Por sinal que muito ruim.)

Eu era menina em crescimento.
Gulosa,
abria os olhos para aquele bolo
que me parecia tão bom
e tão gostoso.

A gente mandona lá de casa
cortava aquele bolo
com importância.
Com atenção. Seriamente.
Eu presente.
Com vontade de comer o bolo todo.
Era só olhos e boca e desejo
daquele bolo inteiro.
Minha irmã mais velha
governava. Regrava.
Me dava uma fatia,
tão fina, tão delgada ...
E fatias iguais às outras manas.
E que ninguém pedisse mais!
E o bolo inteiro,
quase intangível,
se guardava bem guardado,
com cuidado,
num armário alto, fechado,
impossível.


Era aquilo, uma coisa de respeito
Não pra ser comido
assim, sem mais nem menos.
Destinava-se às visitas da noite,
certas ou imprevistas.
Detestadas da meninada.

Criança, no meu tempo de criança,
não valia mesmo nada.
A gente grande da casa,
usava e abusava
de pretensos direitos
de educação.

Por dá-cá-aquela-palha
ralhos e beliscão.
Palmatória e chineladas
não faltavam.
Quando não,
sentada no canto de castigo
fazendo trancinhas
amarrando abrolhos.
"Tomando propósito".
Expressão muito corrente e pedagógica.

Aquela gente antiga,
passadiça, era assim:
severa, ralhadeira.
Não poupava as crianças.
— Valha-me Deus!...
As visitas ...
Como eram queridas,
recebidas, estimadas,
conceituadas, agradadas!

Era gente superenjoada.
Solene, empertigada.
De velhas conversas
que davam sono.
Antigüidades ...


A té os nomes, que não se percam:
Dona Aninha com Seu Quinquim.
Dona Milécia, sempre às voltas
com receitas de bolo, assuntos
de licores e pudins.
D. Benedita com sua filha Lili.
D. Benedita-alta, magrinha.
Lili-baixota, gordinha.
Puxava de uma perna e fazia croché.
E, diziam dela línguas viperinas:
"— Lili, é a bengala de D. Benedita".
Mestra Quina, D. Luisalves,
Saninha de Bili, Sá Mônica.
Gente do Cônego Padre Pio.

D. Joaquina Amâncio ...
Dessa então me lembro bem.
Era amiga do peito de minha bisavó.
Aparecia em nossa casa
quando o relógico dos frades
tinha já marcado 9 horas
e a corneta do quartel, tocado silêncio.
E só se ia quando o galo cantava.

O pessoal da casa,
como era de bom-tom,
se revezava fazendo sala.
Rendidos de sono, davam o fora.
No fim, só ficava mesmo, firme,
minha bisavó.

D. Joaquina era uma velha
grossa, rombuda, aparatosa.
Esquisita.
Demorona.
Cega de um olho.
Gostava de flores e de vestido novo.
Tinha seu dinheiro de contado.
Grossas contas de ouro
no pescoço.


Anéis pelos dedos.
Bichas nas orelhas.
Pitava na palha.
 Cheirava rapé.
E era de Paracatu.

O sobrinho que a acompanhava,
enquanto a tia conversava
contando "causos" infindáveis,
dormia estirado
no banco da varanda.
Eu fazia força de ficar acordada
esperando a descida certa
do bolo
encerrado no armário alto.
E quando este aparecia,
vencida pelo sono já dormia.
E sonhava com o imenso armário
cheio de grandes bolos
ao meu alcance.

De manhã cedo
quando acordava,
estremunhada,
com a boca amarga,
 -ai de mim-
via com tristeza,
sobre a mesa:
xícaras sujas de café,
pontas queimadas de cigarro.
O prato vazio, onde esteve o bolo,
 e um cheiro enjoado de rapé.


***


RUMOS ERRADOS

A caminhada ...
Amassando a terra.
Carreando pedras.
Construindo com as mãos
sangrando
a minha vida.

Deserta a longa estrada.
Mortas as mãos viris
que se estendiam às minhas.
Dentro da mata bruta
leiteando imensos vegetais,
cavalgando o negro corcel da febre,
desmontado para sempre.

Passa a falange dos mortos ...
Silêncio! Os namorados dormem.
Os poetas cobriram as liras.
Flutuam véus roxos
no espaço.


***



CANTARIA


I

Meti o peito em Goiás
e canto como ninguém.
Canto as pedras,
canto as águas,
as lavadeiras, também.

Cantei um velho quintal
com murada de pedra.
Cantei um portão alto
 com escada caída.

Cantei a casinha velha
de velha pobrezinha.
Cantei colcha furada
estendida no lajedo;
muito sentida,
pedi remendos pra ela.
Cantei mulher da vida
conformando a vida dela.



II

Cantei ouro enterrado
 querendo desenterrá.
Cantei cidade largada.
Cantei burro de cangalha
com lenha despejada.
Cantei vacas pastando
no largo tombado.

Agora vai se acabando
Esta minha versejada.
Boto escoras nos serados
Por aqui vou ficando.  



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