segunda-feira, 5 de outubro de 2015

ANNE CERQUEIRA (1964 - )

Anne Cerqueira é formada em Letras pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), cidade onde nasceu. Atua na área de jornalismo e tem trabalhos publicados em vários livros e revistas. Nos anos 90, foi incluída pelo escritor Assis Brasil, na coletânea nacional A Poesia Baiana do Século XX (Imago, 1999), que reuniu 60 poetas baianos.






Poema revisitado






Quero te dar um presente, meu amigo
aquele velho livro ou disco
porque aqui tudo é velho
até mesmo o que acaba de sair do forno
já sai condenado. Vou ler um dos meus poemas
preferidos
para você achar que a vida tem jeito
e só os poetas sofrem
como Maiakovski
ou Bukowski que queria derreter a morte
com versos
como se derrete manteiga
e ele nem tinha ilusões, veja só
sinto pena.
De mim e de você que nada somos
e desafiamos a morte no supermercado.
Quero te dar um presente, meu amigo.
Talvez uma quantia em dinheiro
que te sustente na velhice se você chegar lá
envergado desse jeito
inútil desse jeito
da mesma forma que eu
que já vivi noventa anos em quarenta
(e foram só meses)
e nem tenho nada para te oferecer
pois tudo é gasto.
Vamos ouvir música
comer bobagens
atravessar a rua sob o sol de meio dia
porque é isso que nos resta.
Sou infantil, egoísta e confusa e quero te dar um presente, meu amigo
para que você me odeie profundamente
e diga:
não sei o que fazer com isso. E assim seremos iguais mais iguais que os outros.
Numa irmandade que não nos salva
nem preserva
não é bondosa
nem misericordiosa
nem má. Não existe por códigos especiais e secretos
nem nos torna especiais ou melhores
ou piores
ou diferentes.
Não nos subtrai, nem acrescenta. Mas pela graça de Deus
não nos pede retorno.
Toma é tua essa pedra.
Verbo.
Meu amigo, não sei para que serve
e talvez seja esta sua única função. 


***


Navegar




É preciso ser feliz para esquecer
que a vida é esse prego na carne.
A conta para pagar
o desamor
(o desamor não mata ninguém –
ele disse e eu repeti
tantas vezes que perdeu o sentido)
é preciso perder o sentido
para ser feliz
larga a vida
vai ler um livro.
Navegar
quando preciso.



 ***

Caminho



O azul desabou sobre mim
suas promessas impossíveis

Por onde ir, meu Deus,
cega assim?

Nessa tarde
mínima
e absurda

Onde estás, onde estás
que não respondes?








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