terça-feira, 6 de dezembro de 2011

FLORISVALDO MATTOS (1932- )

O poeta baiano Florisvaldo Mattos é dono de uma dicção que combina rigor formal com alta expressividade lírica. Formado em direito, Florisvaldo Mattos optou pelo jornalismo, atividade que exerce até o presente. Nos anos 60, integrou em Salvador o grupo da chamada Geração Mapa, liderado pelo cineasta Glauber Rocha. Entre suas obras publicadas, estão Reverdor (1965); Fábula Civil (1975); A Caligrafia do Soluço & Poesia Anterior (1996); e Mares Acontecidos (2000), Travessia de Oásis – A Sensualidade na Poesia de Sosígenes Costa. Nesse volume, Florisvaldo analisa a trajetória poética do também baiano Sosígenes (1901-1968) e Poesia Reunida e Inéditos (2010).






SONHOS CLAROS, OLHOS ESQUIVOS...  (INÉDITO)*
     

No sonho vibras; és uma flor que arde.
Abres os olhos, logo se desnuda
A luz da manhã, intensa e sempre muda.
Quando os fechas, já sei que vem a tarde.

No teu trajeto, nada há que eluda
Essa doce ilusão, ou que abastarde
Este meu cogitar (somente o alarde
De pássaros no galho). A mão ossuda

Do tempo para nós dois não existe.
Por entre as árvores, onde persiste
Claro clamor de pensamentos vivos,

Vibra no sonho a glória que me cinge,
Quando vislumbro – ó cintilante esfinge –
A luz da manhã em teus olhos esquivos.

(Salvador, 2011),


***


DURAÇÃO DO AROMA


Não morrem no campo as flores.
Pacíficas continuam
arquiteturas de angústia
dissolvendo-se no chão
amoroso das searas.
Como nuvens distraídas
ficam no solto. Ali somente,
um sofrimento que vem,
uma esperança que vai
da boca dos camponeses
ao chão que abriga silêncio.
Não é pranto nem flor, É vinho.
De amarelo outono e lábios
pranto vinho e flores ficam
incrustados no alimento,


De sangue batendo aos pingos
na superfície das horas
vai seu perfume durando
nas colheitas. Sobrevive
no suor dos músculos tão
sofridos de cicatrizes,
como um hálito de cinza
prenhe de soluço verde.
Prossegue na dor, reunida
à ferrugem dos arados,
a melancolia de olhos,
de pele sacrificada
e ternura corrompida,
de arames e privações.


Que venha o vento brandindo
foices de lua no campo
e corte cercas corte o rio
e das chuvas no caminho
corte horizontes de linho.
Entre abelhas e madeiras,
no coração das florestas
corte as flores e o vizinho
aroma das madrugadas.
Corte pranto dos vaqueiros,
corte rastro dos cavalos
e de quem sofre sozinho
corte voz molhada e fria.
Que venha vento soprando
ferraduras de amargura,
decepe haste das flores
com o alfange da agonia.
Fria lâmina de sombra
inevitável traspasse
o dorso branco do dia.
E o que fica suado na terra
não é pranto nem flor. É vinho.


Sobrevivência do aroma
no lamento desses rostos,
dessas chuvas no caminho,
não morrem no campo as flores:
perduram constituídas
de soluços como o vinho.



***

A CABRA


Talvez um lírio. Máquina de alvura
Sonora ao sopro neutro dos olvidos.
Perco-te. Cabra que és já me tortura
guardar-te, olhos pascendo-me vencidos.

Máquina e jarro. Luar contraditório
sobre lajedo o casco azul polindo,
dominas suave clima em promontório;
cabra, o capim ao sonho preferindo.

Sulca-me, perdurando nos ouvidos,
laborada em marfim — luz e presença
de reinos pastoris antes servidos —,

teu pêlo, residência da ternura,
onde fulguras na manhã suspensa:
flor animal, sonora arquitetura.

 
* Registre-se aqui o nosso mais profundo agradecimento ao poeta por ter tão gentilmente nos honrado com este poema ainda inédito de sua lavra... Abraço  amigo ao "poeta de memórias" Florisvaldo Mattos.

Um comentário:

  1. Flori,

    Meu eterno professor, e uma das vozes da década de sesssenta mais consistente no cenário da poesia baiana.

    Desde "Reverdor" , que se mostra um poeta maduro, de dicção própria, de versos seguros neste manancial onde a poesia vem cada dia se deteriorando em terras baianas.


    Miguel Carneiro

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