terça-feira, 27 de dezembro de 2011

FRANCISCA JÚLIA (1871-1920)

Francisca Júlia da Silva Munster (1871-1920) nasceu em Eldorado Paulista (SP) e faleceu em São Paulo. Sua estreia literária deu-se em 1891, nas páginas do jornal O Estado de São Paulo. Ao longo dos anos, publicou poemas em jornais e revistas, destacando-se pela alta qualidade dos versos, segundo os critérios do tempo. Francisca Júlia publicou quatro livros ao longo da vida. Seu primeiro e mais conhecido é Mármores, de 1895. Nas sequência compôs um volume de versos para crianças, intitulado O livro da infância (1899) e Esfinges (1903). Em 1912, junto com seu irmão, Júlio da Silva, o publicou Alma infantil. A crítica tem destacado usualmente, seguindo nisso a primeira recepção da sua obra, as características parnasianas da poesia de Francisca Júlia, deixando em segundo plano aquilo que João Ribeiro notara no prefácio a esse livro de estréia: a presença de significativos elementos simbolistas. A leitura, hoje, da sua obra, confirma a impressão do prefaciador. Embora muitos dos seus sonetos estejam entre os mais bem acabados de sua época e muitos deles se enquadrem nos preceitos da impassibilidade parnasiana (que os melhores parnasianos, como Bilac, sistematicamente infringiram), é igualmente interessante (e talvez até mais, para o gosto de hoje) a parte da sua obra que se aproxima da dicção simbolista. Alguns fatores, herdados em parte da primeira recepção, tem orientado, nem sempre de modo a produzir justiça ao seu talento e à qualidade da sua obra, a avaliação da sua poesia. Um deles é a insistência na condição feminina. No seu tempo, causou muita espécie aquilo que a crítica sua contemporânea identificou como dicção máscula, ou, pelo menos, dicção não feminina – entendido, nos moldes do tempo, o feminino como predominantemente sentimental e mesmo inferior, por condição, em termos estéticos. Recentemente, a valorização do feminino parece operar uma inversão nessa perspectiva, deslocando novamente a avaliação da obra para a questão do gênero. Outro fator de perturbação decorreu do fato de que a poeta se suicidou no dia do enterro do marido, deixando apenas em projeto um livro que se chamaria Versos áureos. Logo após a sua morte, organizou-se uma segunda edição de Esfinges (1920) incluindo no conjunto poemas que não fizeram parte da primeira edição, além de uma ampla fortuna crítica, de caráter mais laudatório do que analítico – compreensível naquela circunstância, sob o impacto do gesto extremo. Como Mármores teve edição restrita e a primeira edição de Esfinges era inacessível – Otto Maria Carpeaux registrava, já em 1949, que desse livro não havia exemplar nem na Biblioteca Nacional, nem na Biblioteca Municipal de São Paulo –, essa segunda edição tornou-se a base das apreciações críticas subsequentes, apagando-se, assim, a estrutura significativa que a autora tinha dado às suas obras em volume – especialmente a Mármores. Basta olhar o índice desse primeiro livro de poesia para perceber que a ordem e posição dos poemas obedecem a um desígnio: o livro abre e fecha com sonetos gêmeos, intitulados “Musa impassível”, e se divide em duas partes de extensão igual, separadas por traduções de Goethe e Schiller. A primeira parte e a última possuem poemas numerados de 1 a 18 e contrastam no tom, sendo a segunda a que traz as marcas decadentistas, apontadas por João Ribeiro. Da mesma forma, Esfinges é um livro planejado, e não uma recolha. Inclui poemas de Mármores, mas o rearranjo produz novos sentidos para eles. O exemplo mais claro é a junção do primeiro e último soneto de Mármores num único poema, intitulado “Musa impassível”, composto agora dos dois sonetos que tinham esse nome no primeiro livro. Com a disponibilização das primeiras edições, por certo a poesia de Francisca Júlia ganhará nova recepção, e – agora que o preconceito modernista contra a poesia parnasiana e simbolista começa a perder força como padrão único de avaliação literária no Brasil – os muitos poemas de primeiro nível presentes nos dois volumes, bem como a disposição significativa que permite compreendê-los como parte de um desenho maior, poderão ser devidamente apreciados... Com a carioca Gilka Machado e a potiguar Auta de Souza forma o grande trio feminino do pré-modernismo.

 



NOTURNO


Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
se arrasta em direção ao negro cemitério...
à frente, um vulto agita a caçoula do incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;
chora no ar o rumor de um misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
da noite se ilumina ao resplendor da lua...
uma estrige soluça; a folhagem farfalha.

E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
noites, acima dele, em silêncio, flutua
o lausperene mudo e súplice das almas.


***


NATUREZA


Um contínuo voejar de moscas e de abelhas
agita os ares de um rumor de asas medrosas;
a Natureza ri pelas bocas vermelhas
tanto das flores más como das boas rosas.

Por contraste, hás de ouvir em noites tenebrosas
o grito dos chacais e o pranto das ovelhas,
brados de desespero e frases amorosas
pronunciadas, a medo, à concha das orelhas...

Ó Natureza, ó Mãe pérfida! tu, que crias,
na longa sucessão das noites e dos dias,
tanto aborto, que se transforma e se renova,

quando meu pobre corpo estiver sepultado,
mãe! transforma-o também num chorão recurvado
para dar sombra fresca à minha própria cova.


***



INVERNO


Outrora, quanta vida e amor nestas formosas
ribas! Quão verde e fresca esta planície, quando,
debatendo-se no ar, os pássaros, em bando,
o ar enchiam de sons e queixas misteriosas!

Tudo era vida e amor. As árvores copiosas
mexiam-se, de manso, ao resfolego brando
da brisa que passava em tudo derramando
o perfume sutil dos cravos e das rosas...

Mas veio o inverno; a vida e amor foram-se em breve...
o ar se encheu de rumor e de uivos desolados...
as árvores do campo, enroupadas de neve,

sob o látego atroz da invernia que corta,
são esqueletos que, de braços levantados,
vão pedindo socorro à primavera morta.




 

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